Folha de S. Paulo


Números, números e mais números

A mais aguardada (até agora) pesquisa eleitoral da corrida ao Palácio do Planalto saiu na quinta-feira e foi manchete da Folha. Era a mais aguardada porque seria a primeira a registrar a movimentação das intenções de voto depois da implantação definitiva do Plano Real, aquele que o PT acusa de eleitoreiro e com o qual a coligação PSDB-PFL espera eleger seu candidato. Na dança dos números, deu o esperado: Lula perdeu alguns pontos (três, para ser mais exata), e FHC ganhou outros (dois, também para ser exata). O jornal registrou em sua manchete da quinta-feira: "Diminui diferença entre Lula e FHC".

Pesquisas são, de certo modo, um universo indecifrável para o leitor. Poucos conseguem penetrar naquele emaranhado de números para tirar suas próprias conclusões; a maioria fica à mercê das conclusões apresentadas pelo jornal (qualquer jornal). É nessa hora que nasce a desconfiança do leitor. Mais ainda quando ele já tem seu voto decidido por determinado candidato: a tendência de enxergar manipulação nas conclusões da pesquisa cresce na proporção de sua paixão partidária.

Na pesquisa de quinta-feira, segundo relato da secretária de Redação Eleonora de Lucena, responsável também pela edição da Primeira Página da Folha, houve um cuidado extremo na composição do enunciado da manchete (aquele que dizia "Diminui diferença entre Lula e FHC"). Para escrevê-lo, a Redação consultou o Datafolha, que assinou embaixo dessa conclusão. O procedimento é comum na Folha, sempre que a Redação teme que uma conclusão acerca de números de uma pesquisa possa ser mal interpretada, seja pelos jornalistas, seja pelos leitores. Sem a palavra final dos técnicos do Datafolha, uma manchete pode até parar no lixo.

Ocorre que alguns leitores reclamaram da manchete da quinta-feira, enxergando nela uma ligeira manipulação de informações. Para esses leitores, a conta feita pela Folha (a diferença entre os dois candidatos caiu de 22 pontos percentuais para 17, ou seja, cinco pontos) deixou de considerar um conceito que o Datafolha popularizou na divulgação das pesquisas, a margem de erro. Na de quinta-feira, a margem de erro era de dois pontos. Portanto, dos cinco pontos perdidos na diferença entre Lula e FHC, quatro seriam de margem de erro. A diminuição do espaço entre os candidatos seria, então, pequena demais para justificar uma manchete -a menos, voltam a dizer os leitores, que o jornal estivesse tentando favorecer um dos dois candidatos. No caso, o que ganhou pontos.

Tem mais: os números da pesquisa de quinta-feira mostram claramente que a situação voltou ao ponto de partida, a primeira pesquisa feita em 4 e 5 de abril. Lula tinha, então, 37 pontos, contra 21 de FHC. Depois dela, em outras três pesquisas consecutivas o petista subiu e caiu, o tucano caiu e subiu e ambos chegaram à quinta-feira passada com resultados tecnicamente iguais aos de abril: 38 para Lula, 21 para FHC. Os leitores voltaram à carga contra o jornal: não haveria diminuição da diferença, mas uma variação nesses três meses que fez tudo voltar à estaca zero. O jornal, diga-se, não analisou esse fenômeno interessante na edição de quinta-feira (nem na de sexta ou na de ontem).

Registrei todas essas ponderações na crítica interna da quinta-feira. Em resposta, Eleonora de Lucena garantiu que a próxima pesquisa publicada pela Folha terá maiores explicações sobre os cálculos de margem de erro, fundamentais para a compreensão das conclusões a que chegou o jornal. Sugeri que o jornal mantenha também, nas edições que vão noticiar as pesquisas, o gráfico publicado na Primeira Página de quinta-feira, que mostra a chamada série histórica (todas as sondagens feitas até então, com os respectivos resultados), e decifre para o leitor outros conceitos técnicos, como o de tendência (às vezes, mesmo pequenas variações dentro da margem de erro podem levar a conclusões se analisadas junto de dados anteriores, pois revelam tendências; o leitor precisa ser esclarecido também sobre isso).

Em resumo, mesmo que pareça exagerada para alguns leitores, ou até "fernandohenriquista", a manchete da quinta-feira é tecnicamente perfeita. E se ocupo uma coluna inteira para comentá-la e para contar ao leitor o que foi que a crítica interna da quinta-feira mudou nos procedimentos da Redação é porque imagino que até outubro (ou novembro, quem sabe) esse assunto vai estar em pauta, e os leitores precisam de toda a ajuda possível para aprender a ler pesquisas e suas interpretações. Há muita controvérsia acerca do quanto essas pesquisas, números, números e mais números, ajudam a eleger um candidato. Mas não há quase nenhuma controvérsia sobre quanto a mídia poderosa pode fazer por um candidato, mesmo que razoavelmente desconhecido, transformando esses números em manchetes e traduzindo-os em superexposição, apoio e até elogios (alguém pensou em Collor?). Portanto, olho vivo, leitor.

NOTAS
A partir da edição que circula nesta semana, o boletim "Deadline", dedicado a assuntos da mídia, passa a publicar uma avaliação de como está sendo feita a cobertura das campanhas presidenciais nos sete principais jornais e nas duas maiores revistas de informação. O levantamento tem, o próprio boletim reconhece, uma dose razoável de subjetividade. Mas, na tentativa (um desafio lançado pela ombudsman) de fugir das medidas feitas só com a régua, chegou a resultados interessantes.
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Os sete maiores jornais do país publicaram 21.151 centímetros/coluna de reportagens sobre as eleições na primeira semana de julho. Desse total, 40% do espaço foi dedicado a Lula, 27,5% a FHC, 15% ficou para assuntos gerais das eleições, 8% para Quércia, 5,5% para Brizola, 3,5% para Amin e 0,5% para outros candidatos. Dividindo-se esse espaço entre notícias a favor, neutras e contra, o "Deadline" chegou aos seguintes resultados: Lula teve 58% de reportagens desfavoráveis (isso inclui o caso Bisol), mais 28% de notícias neutras e 14% de favoráveis. FHC teve apenas 8,5% de espaço ocupado com notícias desfavoráveis (na semana de lançamento do real), 38,5% de noticiário neutro e 53% de noticiário favorável. Quércia teve 66% de noticiário contra, 32% neutro e apenas 2% favorável.
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Na semana que vem, o "Deadline" vai publicar o balanço feito nas revistas "Veja" e "IstoÉ". O dos jornais inclui Folha, "O Estado de S.Paulo", "O Globo", "Jornal do Brasil", "Zero Hora", "Gazeta Mercantil" e "O Dia".
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Também na semana passada, a revista "Time" publicou uma página de explicações a seus leitores sobre a foto de O.J.Simpson, o ex-jogador de futebol americano acusado de matar a mulher, que foi sua capa na última semana de junho. Tratei disso na coluna de domingo, 26 de junho: a revista alterou a foto com a ajuda de um computador, deixando Simpson mais "malvado" que na foto original. A "Time" também recebeu protestos, porque o ex-jogador aparecia mais negro na foto manipulada que na original, e foi acusada de racismo.
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A revista nega que tenha havido qualquer intenção racista na alteração da foto e, no país do politicamente correto, admite que o cuidado em não incriminar Simpson no texto pode ter sido atropelado pela capa com a foto alterada. "Pelo menos para algumas pessoas, a foto da capa valeu mais do que milhares de palavras", escreveu a "Time". No que equivale a um pedido de desculpas, a revista admite ainda que seu erro foi não ter contado ao leitor, na própria capa, que aquela foto era uma ilustração, e não apenas uma foto. A revista também firma uma posição contra a alteração de fotos jornalísticas.


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