Folha de S. Paulo


Dois pesos e duas medidas

Em várias destas colunas de domingo já escrevi que a Folha pratica, aqui e ali, "fernandohenriquismo" em seu noticiário. O fenômeno não é recente -data da época em que o candidato era ainda ministro da Fazenda, mas já dava sinais de que poderia disputar o Planalto. É inegável que a Folha tem simpatia por Fernando Henrique-ele-mesmo, e por seu ideário. A aproximação entre ambos tem uma longa história que o leitor do jornal certamente conhece. Mais: quem já leu pelo menos dez editoriais desta Folha sabe que há muito mais identidade entre o que pensam o jornal e FHC do que entre o jornal e Lula, para ficar em um único exemplo. (Na verdade, há muito mais coincidências entre FHC e a imprensa em geral do que entre Lula e essa mesma imprensa, e o "fernandohenriquismo" não é fenômeno isolado na Folha ).

Ocorre que a Folha é um jornal apartidário, faz questão desse rótulo e pretende chegar assim às urnas -o que é louvável. Até o momento em que escrevo esta coluna, nada nem ninguém faz supor que a Folha vá se permitir apoiar um candidato às eleições, ainda que esse apoio se manifeste e fique restrito ao único espaço em que seria tolerável -um editorial. O leitor parece saber e acreditar nisso, mas volta e meia tem cobrado explicações da ombudsman acerca do "fernandohenriquismo" da Folha . É hora de o jornal se preocupar seriamente com isso, se não quiser arranhar sua credibilidade junto ao (e)leitorado.

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Se o leitor ainda tem guardado seu exemplar do jornal de quinta-feira, abra na pág. 1-4. Ressalte-se que essa página, a primeira do corpo mesmo do jornal (as anteriores têm os editoriais, colunas, artigos e cartas dos leitores) é das mais nobres da edição. A manchete está ali, para ser vista: "FHC afirma que vai evitar ataques aos adversários - Tucano faz campanha no Rio e prometeu prestigiar o norte fluminense". O noticiário que se segue descreve a visita a três cidades do Rio de Janeiro, quando FHC foi até beijado por uma eleitora e chamado de "bonitão" por outra. Sem qualquer alarde, há ainda a informação de que FHC chegou a Campos (RJ) num jatinho, e que fez um comício usando o equipamento de som "cedido de graça" por um empresário de bailes funk. O único toque, digamos, crítico de toda a página está no chapéu (aquela palavra ou expressão que fica acima do título): "Retórica".

Cinco páginas adiante (quatro para quem recebe a edição nacional), o noticiário sobre candidatos em campanha prossegue com a manchete "Lula usa segurança amadora em campanha - Candidato não pede ajuda à PF e emprega ex-PMs expulsos da corporação - bêbado avança aos pés de petista". O chapéu dessa página, o leitor pode conferir, é "Descaso". O noticiário, crítico em relação à coordenação da campanha petista, diz que Lula usou uma segurança "eclética e falha" nas andanças por Brasília, e que não fez requerimento para ter a companhia dos quatro policiais federais a que todo candidato à Presidência tem direito.

Vai além: diz que a segurança de Lula "chegou a agredir o palhaço Pirulito" e que seu assessor de imprensa empurrou três fotógrafos, sendo que um deles (o jornal não dá detalhes) machucou a perna. Revela ao leitor que Lula usou uma caminhonete emprestada em Brasília, e que esse empréstimo só poderia ser feito mediante a troca por bônus, como manda a lei eleitoral, porque representa (diz o jornal) "despesas com transporte".

Se o leitor prestou atenção, percebeu que o jatinho de FHC não foi questionado pelo jornal como "despesas com transporte", nem sua segurança foi checada (o jornal sequer cita quantos homens acompanhavam FHC na caminhada que fez pelas cidades). Ao contrário do "bêbado" que, segundo a Folha diz ter ouvido de um assessor, "se estivesse com uma arma, poderia ter ferido Lula gravemente", a eleitora que beijou FHC não representou perigo para a Folha (e se ela estivesse armada, pergunto eu?). E há ainda o aparelho de som "cedido de graça" ao candidato do PSDB. Para FHC, a Folha tem outra interpretação da lei eleitoral, ao que parece.

O jornal usa dois pesos e duas medidas, e não é de agora, quando fala de FHC e de Lula. O que escrevi aqui é apenas um exemplo, mas baseado nele o leitor pode encontrar muitos outros em quase todas as edições da Folha (e do restante da imprensa). O "fernandohenriquismo" se manifesta em títulos mais generosos, coberturas menos ácidas, na cobrança menos estridente. Não fosse FHC ter posado para a foto em que aparece ridículo sobre um jegue, ou sua frase infeliz se dizendo "mulatinho" de "pé na cozinha", estaria sendo ainda mais poupado pela mídia. Se alguém andou atrapalhando a vida do candidato FHC nos últimos dias, foi ele mesmo. Impediu que a imprensa continuasse mostrando sua imagem como a do sábio (e elegante) professor que nunca erra nem uma vírgula.

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Na sexta-feira, a Folha deu uma pequena reportagem em sua página 1-7 (pode procurar, leitor) informando que o Tribunal Superior Eleitoral, sem verbas, não está conseguindo cumprir a lei eleitoral que manda custear as despesas dos agentes federais que fazem a segurança dos candidatos. E, sem verbas, os candidatos estão sem segurança fornecida pela Polícia Federal. O jornal não ligou uma coisa à outra, e não disse ao leitor se essa era a verdadeira razão de Lula estar desacompanhado em Brasília. É ou não ter dois pesos e duas medidas para tratar a mesma notícia?

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Na mesma sexta-feira, em sua página 1-7, o jornal voltou a tocar no assunto da caminhonete emprestada a Lula para cobrar do candidato o respeito à lei eleitoral. Teve o cuidado de informar que os jatinhos usados por FHC estão tendo as contas devidamente "penduradas" para quando os bônus eleitorais chegarem ao PSDB. De novo, dois pesos e duas medidas.

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Se isso não é "fernandohenriquismo", caro leitor, que nome você sugere?

Em maio, você pode conferir no quadro ao lado, a ombudsman atendeu 572 leitores -um recorde, especialmente se for considerado que estive fora durante toda a primeira semana do mês, para participar do encontro anual dos ombudsmen de imprensa que aconteceu nos EUA.

Cartas, faxes e telefonemas que comentavam a cobertura dada pela imprensa à morte do piloto Ayrton Senna foram os principais responsáveis pelo aumento do número de leitores que procuraram a ombudsman. Sobre esse único assunto, 89 leitores se manifestaram (a maior parte, para criticar duramente a cobertura, conforme relatei na coluna do domingo, 15 de maio). Talvez por isso os leitores tenham apontado menos erros (41, contra 69 no mês passado), e feito menos elogios à Folha (foram sete, contra 15 no mês anterior). As críticas ao jornal permaneceram na média (44, contra 47 em abril).

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Outro assunto que gerou muitos protestos foi a reportagem de capa da Revista da Folha do domingo, 22 de maio, "A Perua de Deus" -um perfil da pastora evangélica Sonia Hernandes. Até ontem, 35 leitores, evangélicos em sua maioria, haviam procurado a ombudsman para reclamar do tom irônico com que a reportagem coloriu o assunto. Como registrei na semana passada, é difícil saber quantos leitores agiram espontaneamente, porque Sonia Hernandes conclamou seus seguidores na igreja a protestar contra a reportagem, por considerá-la ofensiva.

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De qualquer forma, maio foi um mês em que os leitores fizeram valer (ainda mais) seus direitos diante da Folha . E isso é bom.

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A mídia em geral está se esforçando para apresentar a cobertura mais criativa e surpreendente da Copa do Mundo. Na semana passada, multiplicaram-se na imprensa as reportagens em que os própios veículos "vendem" ao leitor esse esforço, descrevendo como, com quantos profissionais e com que avanços tecnológicos será executada a tarefa de acompanhar a seleção. Até agora, no entanto, por mais que tenha procurado na imprensa, não vi nada de realmente novo na cobertura que está sendo oferecida. E você, leitor, o que está achando? Eu gostaria muito de saber.

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Na quinta-feira, a Folha publicou reportagem com chamada na Primeira Página contando que o candidato do PMDB tem, ele também, um "filho por fora". O rapaz, um delegado de 27 anos, afirma que nasceu do romance entre Quércia e sua mãe, namorados na juventude. A reportagem revelava, no entanto, que a Folha havia estrevistado esse rapaz em 1990. Ou seja, caro leitor, você foi mais uma vez o último a saber.

Até ontem, o jornal não havia dado qualquer explicação aos leitores para o fato de que enfiou uma informação na gaveta em vez de publicá-la. Pessoalmente, acho justificável que não se publique informação que ultrapassa a fronteira da privacidade de pessoas públicas quando isso não é importante nem decisivo (em 90, Quércia era um homem público, mas o fato de ter um "filho por fora" não seria relevante, nem ele estava em campanha). Ocorre que continua sendo desimportante a informação, porque não altera o desempenho que se espera de Quércia como eventual presidente da República. Mas, já que o jornal achou por bem revelar a história, continua devendo ao leitor uma explicação sobre seus motivos para enfiá-la na gaveta por quatro anos. A não ser que queira permitir a esse mesmo leitor desconfiar que a Folha não publica tudo o que sabe -ao contrário do que reza seu Manual.


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