Folha de S. Paulo


Bilhões de (falsas) palavras

Foi-se o tempo em que uma foto podia valer mais do que mil palavras. Desde que poderosos computadores e sistemas de tratamento de imagens entraram nas redações, uma simples foto passou a valer muito mais do que isso. O que se pode fazer com essas máquinas é inacreditável -literalmente. Você, leitor, pode ser facilmente enganado sem se dar conta. Pode ser colocado diante de uma cena que jamais existiu. Pode ser testemunha de um fato que nunca ocorreu. É exatamente aí que mora o perigo -e que perigo.

Na semana passada, as duas principais revistas de informação americanas reservaram suas capas para um assunto que chacoalha o país: o assassinato de Nicole Simpson, uma ex-garçonete loira e bonita que até 92 foi casada com O.J. Simpson, ex-jogador de futebol americano, ator em Hollywood ("Inferno na Torre" está entre os filmes em que ele fez "pontas"), comentarista de TV na área de esportes, negro, igualmente bonito e rico. Um ídolo nacional. Nicole e um amigo foram assassinados na casa dela; O.J. Simpson, suspeito, tentou uma fuga espetacular (transmitida ao vivo pela televisão), foi preso e está sendo acusado. Os jornais brasileiros, registre-se, cobrem mal esse caso.

A capa da "Newsweek" circulou com a foto feita pela polícia de Los Angeles no momento em que Simpson estava sendo indiciado pelo crime. A capa da "Time" trouxe também uma foto de Simpson depois da prisão, e um pequeno aviso colocado no índice da revista indica que ela foi alterada com a ajuda de um computador. Não se sabe como nem por que razão o trabalho foi feito (a revista não conta), mas é evidente que o Simpson da "Time" parece mais malvado -e mais "criminoso"- que o Simpson da "Newsweek". O caso abriu uma polêmica nos EUA.

Não é a primeira do tipo. No início deste ano, uma fotomontagem feita também com a ajuda de computadores gerou discussões por lá. Publicada pelo jornal "Newsday", que circula em Nova York e Long Island, mostrava as patinadoras Tonya Harding e Nancy Kerrigan dividindo o mesmo rinque durante um treino. Menos de um mês antes, Harding planejara um ataque contra Kerrigan que quase a tirou das competições; as duas não se falavam e evitavam até se olhar -treinar juntas, então, era impossível. Ambas integravam a equipe americana de patinação no gelo nas Olimpíadas de Inverno, e a cena que milhões de pessoas viram naquela fotomontagem perfeita jamais aconteceu.

As revistas estão à frente dos jornais na manipulação de imagens, e frequentemente se defendem dizendo que as fotos alteradas produzem apenas ilustrações para o leitor -o que pressupõe que o leitor pode separar, em sua cabeça, uma foto-ilustração de uma foto-reportagem. Nem sempre. Não haveria, defendem-se ainda as revistas, a intenção de enganar o leitor -mas sempre há o risco. Editores de arte tentam produzir, com essa tecnologia, fotos que valham mais do que meras mil palavras. Às vezes, conseguem: em abril deste ano, a "Veja" circulou com uma capa que tinha um "close" fechado de Fernando Henrique Cardoso e o título "De olho no Planalto". Em suas pupilas, aparecia a silhueta do Palácio do Planalto. Provavelmente não há melhor maneira de dizer aos leitores que essa é a menina-dos-olhos de FHC (a revista avisou seus leitores de que a foto era uma "montagem eletrônica").

A publicidade usa e abusa desse recurso desde muito antes da imprensa, e algumas revistas especializadas também (ou você, leitor, pensa que aquelas coelhinhas que aparecem na "Playboy" como vieram ao mundo são mesmo tão perfeitas?). Até certos limites, chega a ser aceitável. No jornalismo, entretanto, é extremamente perigoso. E anti-ético. Uma imagem como a de O.J. Simpson alterada na capa de uma revista como a "Time" pode virar a opinião pública -no caso, contra ele. As consequências são incalculáveis. Manipular uma imagem é mais do que passar a perna no leitor: é mentir para ele. No jornalismo, essa prática não cabe.

Jornais como a Folha, onde os equipamentos que tratam as imagens são sofisticados e estão avançando rapidamente, têm condições de fazer o diabo com uma foto. Quer um exemplo? Com tempo e paciência, é possível "fabricar" a cena de Romário marcando um gol contra na partida entre Brasil e Camarões. Ou "fabricar" a cena de Lula montado no cangote de FHC, ou ainda de FHC discursando ao lado de Quércia sobre o carro de som do sindicato dos metalúrgicos do ABC. Tudo isso com uma perfeição de deixar você, leitor, de queixo caído. (É bom deixar claro que nada disso jamais aconteceu na Folha; eventualmente, o jornal tem publicado fotos mais, digamos, artísticas, usando a dupla exposição de uma mesma chapa de filme, como aquela que combinava o perfil de Romário com a bandeira dos EUA, publicada há alguns dias. Além disso, a Folha não se permite ir, e ainda assim sempre avisa o leitor das condições em que essas fotos especiais são feitas).

Ocorre que, com o avanço das técnicas de manipulação de imagens, é preciso abrir a discussão sobre os limites dessa prática antes que ocorra algum acidente grave de percurso. A vigilância da imprensa sobre a imprensa funciona (foi a imprensa americana que alertou para o truque da capa da "Time", assim como o do "Newsday"), e o importante é que não ocorram abusos. Jornais não têm o direito de "maquiar" informações, ainda que possam (e devem) usar a tecnologia para produzir fotos melhores, mais nítidas, mais reais. Porque, manipulada para atender interesses de quem quer que seja, uma foto deixa de ser informação para ser uma arma. Pode valer bilhões de palavras, mas elas serão tão falsas quanto a imagem mostrada. Isso não interessa a você, leitor.

NOTAS
Um dos maiores pecados da imprensa brasileira (toda ela, esta Folha incluída) é o de se fazer cega, muda e surda diante de "furos" dados pela concorrência. Na semana retrasada, a Folha publicou uma importante entrevista com o médico Aníbal Faundes, que admitiu fazer abortos ilegais de fetos malformados num dos maiores centros de atendimento à mulher instalados no país, o Caism, ligado à Unicamp.
O que o médico disse não chega a ser novidade, mas sua coragem de revelar em público que faz esses "abortos éticos" ajudou a reabrir a discussão sobre a descriminalização do aborto no Brasil. Faundes corre o risco de ser processado, porque o que ele faz, pela lei, é crime. Exceto por algumas notas, o restante da imprensa se calou.
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Na Folha, o caso provocou reações de leitores que escreveram para o jornal, artigos de autoridades apoiando Faundes e até a declaração de mais um médico, admitindo (na edição de sexta-feira) que também já fez esses "abortos éticos". Se a lei que regula o aborto for alterada um dia, o mérito pode ser do médico Aníbal Faundes e da Folha. Ambos cumprem seus papéis nesse caso -que, por uma falha de caráter do restante da imprensa, é cada vez mais um caso só da Folha.
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Reportagem do correspondente em Washington da Folha, Carlos Eduardo Lins da Silva, publicada no domingo passado ao lado desta coluna, mostra que os jornais americanos são cada vez mais apartidários nas eleições presidenciais. Em 1960, quando John Kennedy se elegeu, 58% dos jornais apoiaram algum candidato em seus editoriais (boa parte deles rendeu-se a Richard Nixon, derrotado naquela eleição). Esse número chegou a 62% em 1976, quando Jimmy Carter foi eleito, e caiu para 15% em 1992, com a eleição de Bill Clinton.
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No Brasil, poucos jornais revelam seu apoio por candidatos em editoriais. Em compensação, a maioria faz campanha aberta no noticiário, oferecendo a seus leitores informações enviesadas e distorcidas. É muito menos honesto do que abrir espaço em um editorial para apoiar quem quer que seja. Mas a imprensa, assim como outras instituições, ainda tem muito o que caminhar para ser verdadeiramente livre no Brasil.
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Continuo achando que alguém que se proponha a medir o espaço de cada candidato na imprensa, comparando-o com a posição desse mesmo candidato nas pesquisas eleitorais, vai revelar surpresas importantes para o (e)leitor. Neste caso, não basta medir apenas o espaço físico: é preciso medir a simpatia por fulano, sicrano e beltrano. Quem se arrisca?


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