Folha de S. Paulo


O que revela um fundo de baú

Até anteontem, sexta-feira, 20 leitores já haviam protestado contra uma reportagem que a Folha publicou na quinta-feira da semana passada, 21 de abril, debaixo do título "Lula declarou admirar Hitler e Khomeini". É verdade que a maior parte desses leitores vão votar em Lula para presidente, e que seus protestos levam em conta o que eles imaginam ser uma indisposição da Folha contra o candidato do PT. Mas alguns de seus argumentos são imbatíveis, e merecem análise.

Um exemplo: a Folha não revelou quem foi que desenterrou a entrevista de Lula feita 15 anos atrás -e sem esse dado, importante, o leitor não pôde conhecer a origem de um golpe de campanha contra o PT, promovido por alguém que tenta grudar ainda mais no candidato a imagem de radical. Se esta vai ser a corrida eleitoral mais suja a que já se assitiu, a imprensa deveria ter especial preocupação em revelar a fonte das acusações e dos dossiês que prometem pipocar daqui até dezembro.

Ao apresentar ao leitor o que disse Lula, o jornal "editou" as declarações sobre Hitler e Khomeini, retirando-as de um contexto (a íntegra da entrevista) e menosprezando uma situação (ela foi feita em 79) que poderiam explicar muita coisa. De um total de 12 páginas de entrevista, a Folha pinçou duas frases. Não teve o cuidado de ler a entrevista inteira, ao que parece, porque não ofereceu ao leitor uma análise de tudo o que disse na ocasião aquele Lula de 34 anos, recém-saído de duas greves monumentais que mudaram a história sindical e política do Brasil, às vésperas de fundar um partido que hoje é o PT. Duas de suas frases foram suficientes.

Se tivesse feito reportagem, no sentido mais nobre da palavra, a Folha poderia ter contado ao leitor que, sobre Khomeini, um Lula nada radical também disse na entrevista: "Ninguém pode ter a pretensão de governar sem oposição. E ninguém tem o direito de matar ninguém. Nós precisamos aprender a viver com quem é contra a gente, com quem quer derrubar a gente. Não é justo o Khomeini tomar o poder, ser aplaudido, admirado e depois começar a matar os caras que são contra ele. Então ele teria que admitir como natural que o Xá matasse os adversários. Acho que o importante é fazer a coisa de forma que não sobre argumento pra ninguém ser contra". À pergunta "Quer dizer que você admira o Adolfo (Hitler)?", Lula respondeu na mesma entrevista: "Não, não. O que admiro é a disposição, a força, a dedicação. É diferente de admirar as idéias, a ideologia dele". Segundo anotação da entrevista original, a resposta foi dada em tom "enfático". Ao registrá-la, apenas na edição de 28 de abril, o jornal estranhamente não reproduziu esse detalhe.

Se tivesse feito reportagem, no sentido mais nobre da palavra, a Folha poderia ter contado ao leitor que, calouro na política em 79, Lula disse admirar em Hitler e Khomeini algo que talvez não soubesse nomear: seu carisma. E é inegável que ambos tivessem carisma (aliás, Hitler aparece listado como exemplo no verbete "carisma" do Novo Manual da Redação editado pela Folha, ao lado de Getúlio Vargas, Charles de Gaulle e Fidel Castro, numa lista que ainda poderia ter Winston Churchill, Franklin D. Roosevelt ou Stalin).

Em vez de ter tratado a entrevista com um certo sensacionalismo, a Folha deveria ter se preocupado em enquadrar o caso dentro do que ele é: um golpe de campanha com o objetivo de criar um fato (negativo) para um candidato adversário (de quem? O jornal não revelou ainda. Resguardou uma fonte em detrimento do direito que o leitor tem de conhecer os bastidores da tal campanha mais suja da história). E poderia ter conservado sua isenção numa corrida eleitoral em que esse tipo de "revelação" promete ser pauta diária. A cada dossiê, a cada fundo de baú revirado, a imprensa tem que responder com rigor cirúrgico: abri-lo e dissecá-lo para oferecer ao público um diagnóstico preciso e equilibrado sobre seu conteúdo e sua confiabilidade.

A Folha perdeu uma boa oportunidade, e irritou seus leitores com um comportamento apressado e razoavelmente irresponsável, que dá margens a suspeitas como as que aparecem em várias das manifestações à ombudsman: o jornal estaria ajudando a atrapalhar a campanha de Lula.

Levantamento do boletim "Deadline" mostra que a Folha está publicando um noticiário equilibrado entre os dois candidatos mais bem colocados nas pesquisas eleitorais, Lula (36% na última pesquisa Datafolha) e Fernando Henrique Cardoso (20%). Do espaço reservado à cobertura das eleições, a Folha estaria reservando 12,77% para Lula e 11,05% para FHC. "O Estado de S.Paulo" estaria dando 6,58% para FHC e 6,22% para Lula. "O Globo", 5,66% para FHC e 2,70% para Lula. "Jornal do Brasil", 7,86% para FHC e 4,82% para Lula.

Lembro ao leitor que esses números revelam pouco, quase nada. É preciso analisar como os jornais estão ocupando esses espaços - e a impressão que os leitores da Folha continuam manifestando em cartas e telefonemas é de que o jornal está acometido de "fernandohenriquismo". Ainda falta alguém analisar se o espaço reservado para o candidato do PT tem matérias de conotação mais negativa ou positiva do que aquelas publicadas sobre o candidato do PSDB. Se as fotos em que Lula aparece são mais favoráveis ou cruéis do que aquelas em que FHC aparece. Ou seja, ainda falta um trabalho mais consistente sobre a cobertura que os jornais estão fazendo desta eleição.

A Folha noticiou os números do "Deadline" em sua coluna Painel de terça-feira, 26 de abril, sem a devida ressalva de que eles foram obtidos com régua, e não com uma análise crítica do jornal. Análise, aliás, que a imprensa continua devendo a seus leitores.

Por motivo de viagem, Ricardo Semler só volta a escrever em 15 de maio.

Um artigo do jornalista Janer Cristaldo publicado no Mais! de domingo, 24 de abril, provocou reações não só de leitores mas da Funai e entidades ligadas aos índios. No artigo, Cristaldo sustenta que não houve massacre algum de ianomâmis em Haximu, como autoridades anunciaram e a imprensa noticiou fartamente no ano passado. "Onde estão os 19, 40, 73, 89, 120 e finalmente 16 cadáveres chacinados?", pergunta o artigo, sintomaticamente intitulado "Os bastidores do ianoblefe".

As reações contra o texto de Cristaldo, apaixonadas em sua maioria, não foram suficientes para responder a dúvida que ele levanta: sem provas, sem evidências e sem corpos, como pode ter havido crime? É verdade que o texto do jornalista é racista, e que tem defeitos técnicos -para provar que os ianomâmis são índios ferozes, Cristaldo recorreu a um livro do antropólogo Napoleon Chagnon que já não tem respaldo entre seus colegas. Chagnon teria exagerado nas tintas ao descrever os costumes daqueles índios com quem conviveu.

Por mais polêmicas que pareçam, as opiniões de Cristaldo sustentam-se num argumento difícil de refutar. A imprensa jamais conseguiu reunir as provas de que o massacre de Haximu tenha mesmo ocorrido, ainda que 24 garimpeiros tenham sido indiciados no caso, à espera de julgamento. Aos leitores irados, sugiro que escrevam ao Painel do Leitor -para onde também encaminhei cartas das entidades ligadas aos índios eventualmente endereçadas à ombudsman. Neste episódio intrincado, entretanto, há que se dar razão a Cristaldo quando ele diz que a imprensa ajudou a patrocinar um festival de desinformação que segue até hoje no caso Haximu.

O caderno especial sobre os 10 anos da derrota da emenda que restabelecia eleições diretas, publicado no domingo passado, conseguiu opiniões unânimes dos leitores. Foi muito elogiado, mas criticado também porque deixou de trazer a lista dos parlamentares que votaram contra a emenda na sessão de 25 de abril de 1984. "Boa parte deles continuam por aí, fazendo política. O leitor poderia saber quem são", disse uma leitora de São Paulo.

Os números do atendimento de abril estão aí ao lado. Foi um mês com fois feriadões (Semana Santa e Tiradentes), mas nem isso tirou o fôlego dos leitores. Eles telefonaram menos, mas escreveram mais. Confira no quadro.
Durante toda esta semana, a ombudsman estará fora do jornal, participando do encontro anual de ombudsmen de imprensa promovido pela ONO (Organization of News Ombudsmen), que desta vez acontece em Minneapolis, nos Estados Unidos, entre hoje e quinta-feira. As cartas e os telefonemas ficarão aguardando meu retorno, em 10 de maio, para eventuais providências, mas os casos mais urgentes serão encaminhados imediatamente à Redação por minha secretária. Até a volta.


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