Folha de S. Paulo


O filho por fora

Com sua licença, leitor, vou fazer aqui uma crítica preventiva da mídia -mas que nem de longe, infelizmente, está baseada em futurologia. O motivo é simples: encerrado ontem o prazo de desincompatibilização dos candidatos com cargos públicos, a corrida eleitoral ganha novo cenário a partir de hoje. Os que sonham com o Planalto já ingressaram na complicada fase de negociação para a composição de chapas, e agora o jogo é para valer. Coisa para profissionais.

Diante desse quadro, os jornais, revistas, rádio e TV mergulham desolados na constatação de que esta vai ser a campanha mais suja a que o país já assistiu. Promete deixar no chinelo o episódio Miriam Cordeiro (a ex-namorada de Lula que o acusou, em 89, de encorajá-la a fazer um aborto, num depoimento no programa eleitoral de Collor). De tramóias financeiras a escândalos sexuais e muita ladroagem, há o temor de que dossiês preparados por alguns candidatos, e devolvidos à altura por outros, transformem a disputa pela Presidência numa corrida de obstáculos dentro do pântano.

Qual deve ser a postura da imprensa diante disso? O que podem fazer jornais, revistas, rádio e TV diante de candidatos municiados por revelações acachapantes sobre seus adversários? O que se pode esperar do noticiário até que saia das urnas o novo presidente eleito pelo voto direto?

Bem, a imprensa pode não fazer nada, publicar as chamadas baixarias de campanha da forma como saírem da boca de candidatos e seus assessores, e ponto final. Estará, assim, reproduzindo o comportamento que teve em 89, quando muito se falou sobre a vida íntima de Lula e Collor e nada se discutiu acerca de suas propostas de governo. Por conta da eleição, o (e)leitor soube que Lula tinha uma filha por fora do casamento -Collor idem. Soube ainda que a de Lula quase não vingara por conta de um aborto a que a mãe diz ter resistido, e que o de Collor vem a ser resultado de uma aventura a quem o pai muitas vezes deixou faltar a mesada.

Sobre o que fazer com a saúde, a educação, a dívida externa, a inflação, etc, a imprensa se esqueceu de perguntar. O que saiu publicado eram promessas -vagas- de campanha, e a maior delas feita e repetida à exaustão por Collor, de não tocar na poupança, foi enterrada soberbamente um dia após sua posse. Diante de um país e uma imprensa atônitos que descobriram, ali, que não conheciam nada do programa de governo do presidente da República.

Desta vez, não há desculpa. A imprensa adquiriu na marra o chamado know-how, tem experiência acumulada e, portanto, o dever de agir de outra forma. Não pode censurar as baixarias de campanha, nem esse é seu papel. Não pode, ela sozinha, escolher o que é baixaria publicável ou impublicável sobre cada um dos candidatos.

Mas pode conter formidavelmente o mar de lama se, a cada vez que se deparar com uma dessas baixarias, interrogar o candidato que a promove acerca de seu programa de governo. Repito: programa de governo, para cada uma das áreas críticas deste país. Nada de se contentar com as promessas de campanha. Porque o país já sabe, na prática, qual é a diferença entre um arroubo de palanque e o compromisso com mudanças de verdade.

Ocorre que a cobertura da corrida pelo Planalto já está embicando da pior forma possível, e a imprensa passou a última semana seduzida pelas evidências de que o senador Fernando Henrique tem, ele também, um filho por fora. O que era um velho zum-zum-zum nas redações (sim, leitor, você foi o último a saber) acabou virando pergunta numa entrevista da revista "Exame", e o então ministro deu sua resposta. "Isso é uma besteirada".
Emendou uma insinuação de que "dizem coisas" sobre Quércia, o temido autor dos piores dossiês que estariam prontos para sair à praça, de onde Fernando Henrique e todos os outros esperam chumbo grosso.

Bastou para que repórteres e mais repórteres de todas as publicações fossem escalados para repetir a pergunta ao candidato, até o ponto de torná-la ridícula. Porque se o candidato tem um filho por fora, a quem mais que sua mulher, a mãe do filho e o própio filho isso interessa? Que traço de caráter isso desnuda num país em que muitas famílias têm lá a sua história de um filho por fora, e a maior parte deles encontra a tolerância de quem deveria se incomodar com o fato?

Se, em vez do filho por fora, a imprensa estivesse preocupada com detalhes dos programas de governo, a história teria ficado restrita a "Exame" e pouco mais que isso. Teria recebido repercussão adequada à sua possibilidade de interferir no desempenho de Fernando Henrique como eventual presidente da República. Estaria já reduzida a uma passagem na biografia do candidato, e só.

Não é demais lembrar que, até agora, o leitor só conhece propostas de programa do PT (o partido não tem ainda programa definitivo), publicadas na imprensa mas ainda não suficientemente discutidas. Não é demais dizer, ainda, que alguns dos terríveis dossiês engatilhados na campanha podem até conter fatos relevantes, que merecerão investigação séria e profunda por parte da imprensa -ou terão, para o (e)leitor, a pouca importância objetiva, a explosividade fácil e o apelo sensacionalista de histórias como as que relatam um filho por fora.

Está nas mãos da imprensa, portanto, boa parte da responsabilidade pelo nível da campanha que ela teme e anuncia ser a mais suja da história do país. Ao leitor, também não é demais lembrar que ele tem o direito e o dever de protestar e exigir que jornais, revistas, rádio e TV divulguem mais sobre propostas de governo que orientem seu voto do que baixarias de campanha que esgotem sua paciência. Pode ser que assim, além de suja, esta se transforme na mais esclarecedora campanha eleitoral que o país já teve.

O leitor pode conferir os números do atendimento de março aí ao lado. O mês não chegou a ter um assunto dominante entre as reclamações. Já os elogios (15, um recorde em minha gestão) aumentaram devido à série "Qualidade Total", que chega hoje a seu quarto número. Não há dúvidas de que o jornal marcou um gol com essa iniciativa. O Painel do Leitor mostra a mesma reação com uma enxurrada de cartas que também elogiam a Folha.

Depois da coluna de 20 de março, em que a ombudsman criticou os títulos da Folha, não param de chegar protestos contra os piores publicados no jornal. O "eleito" na semana que passou apareceu na edição de segunda-feira, pág. 1-10: "Higiene na infância pode fazer mal à saúde". Antes que o leitor pudesse imaginar que a Folha estava invertendo todos os conceitos do que seja saúde, a reportagem esclarecia que crianças mantidas em ambientes muito limpos podem desenvolver, na idade adulta, uma doença específica que teria alguma relação com os rígidos hábitos de higiene. O título, como se vê, enganou o leitor.

Os quatro grandes jornais deram, na segunda-feira, a mesma manchete para informar como acabou o Grande Prêmio do Brasil, que aconteceu domingo passado. Era "Senna erra e Schumacher vence" (em "O Globo", a frase ficou pouco maior que isso). Com essa constatação enviesada de que o alemão só chegou em primeiro porque o brasileiro cometeu uma bobagem, a imprensa coroou o festival "sennista" da semana anterior, quando todas -sem exceção, todas- as coberturas apontavam a vitória de Ayrton Senna em Interlagos. A Folha chegou a escrever que o melhor piloto do mundo (Senna), na direção do melhor carro do mundo (a Williams) teria sua consagração no autódromo. E que só Schumacher acreditava em sua possibilidade de vencer. Senna, todo mundo viu, rodou quando estava em segundo lugar e com poucas chances de recuperar o primeiro. Enterrou as previsões mais do que otimistas, e deixou ver quanto é viciado o noticiário esportivo. O compromisso com a precisão (e, por extensão, com o leitor) vale menos do que a torcida da imprensa nessas horas.

A imprensa já se esqueceu de que os oligopólios são o vilão da URV e do plano FHC. O país convive com o novo indexador há um mês, o ministro virou candidato e os preços chamados de "abusivos" continuam em vigor. O assunto saiu da pauta, ainda que esteja dentro do bolso do leitor.


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