Folha de S. Paulo


Para pensar em casa

A imprensa deve manter distanciamento crítico em relação ao assunto que cobre, além de ter uma inabalável postura de imparcialidade e isenção diante dos fatos -quaisquer fatos. Na dúvida, um bom jornal deve ouvir todos os lados, checar todas as opiniões, garantir espaço para todas as versões. Jamais um jornal pode se colocar no papel de juiz dos fatos, sob o risco de oferecer ao leitor uma visão contaminada deles. Até aqui, nada de novo, certo?

Se o leitor concorda, vamos em frente. Desde 1988, funcionários do Judiciário recebem seus pagamentos no dia 20 de cada mês. É um privilégio, não resta dúvida, especialmente porque a maioria dos trabalhadores de empresas privadas se contenta em receber seus salários no quinto dia útil depois de encerrado o mês. Ocorre que o privilégio foi votado e aprovado no Congresso em 1988, integra a Constituição e até a semana retrasada, passava longe da pauta de discussões da imprensa. Bastou que o Judiciário usasse sua noção doméstica de justiça e convertesse os salários de seus funcionários para a URV com base no dia do pagamento, o dia 20, e o caso virou manchete.

Desde o início, o ministro FHC diz que seu plano foi feito para impedir perdas salariais. Na hora de colocá-lo em prática, o governo editou uma medida provisória confusa (basta conferir nas íntegras que os jornais publicaram), em que a data de conversão dos salários do funcionalismo público ficou por conta da imaginação de cada um. Nem essas evidências animaram a imprensa a procurar o equilíbrio dos fatos. A pretendida preservação dos salários que o Judiciário arquitetou com a conversão pelo dia 20 foi batizada de "aumento autoconcedido" na primeira hora. Nada mais errado, nem mais apressado, nem mais desinformativo.

Não há "aumento" neste caso. Muito menos "autoconcedido". Há, sim, um privilégio votado e aprovado pelo Congresso em 1988, que o Judiciário quer transformar em direito líquido e certo. Por que a imprensa não diz isso assim, com todas as letras, para seus leitores?

Na semana passada, o jornal "O Globo", como versão escrita do "Jornal Nacional" da Rede Globo, abusou de seu alinhamento incondicional ao poder e fez do caso um escândalo. A versão que serviu ao jornal foi a do presidente Itamar, para quem o STF, órgão máximo do Judiciário, cometera um abuso inapelável contra o plano FHC. Na edição de terça-feira, a manobra salarial do Judiciário foi chamada de "aumento ilegal" em manchete do "Globo". O jornal carioca não abriu um centímetro de espaço para a possibilidade de que, ao calcular de maneira discutível os salários de seus funcionários em URV, o Judiciário tentava apenas não perder. (Não perder um privilégio, é verdade, mas repito: votado e aprovado pelo Congresso em 1988).

Outras demonstrações de má vontade atravessaram as páginas de todos os grandes jornais, esta Folha incluída, e as manchetes dos telejornais, com exceção do "TJ Brasil" de Boris Casoy. Foi dele a visão mais correta, para não dizer coerente. Como em outras ocasiões, Casoy exercitou sua independência e não temeu ser considerado antipático por telespectadores com salários convertidos em URV pela média, atônitos diante da discussão sobre o aparecimento de novos marajás no Legislativo e no Judiciário. Casoy não cedeu ao apelo fácil (facílimo) de criticar esses neomarajás da URV. Como jornalista, fez apenas seu papel. Informou.

Na Folha, Janio de Freitas abrigou (também coerentemente) a discussão em sua coluna de terça-feira, mas a essa altura a chamada "crise dos três Poderes" já pegava fogo e o jornal seguiu em sua linha de desconsiderar as razões do Judiciário -mesmo que elas fossem a razão de tudo. Meteu-as no mesmo saco das explicações do Legislativo e das broncas dos militares, que deixaram a caserna para reclamar ao Executivo.

É verdade que a Câmara, também numa manobra de conversão salarial denunciada na sexta-feira, conseguiu driblar a URV e acrescentar aumento real (esse sim) aos salários da casa, assim como é verdade que os militares reclamam há tempos porque as tropas têm soldos que não chegam a ser uma maravilha. Ou seja, há clima para a crise, material de sobra para encher páginas de jornais e manchetes de telejornais -mas nada que justificasse a tomada de posição por parte da imprensa, muito menos quanto ao "aumento autoconcedido" pelo STF, o foco primeiro e mais resistente da tal crise.

Convido o leitor a voltar àquele primeiro parágrafo deste texto e analisar por si: a imprensa prega firmemente, mas será que anda cumprindo o que está escrito ali? À luz dessa cobertura que mais confundiu do que explicou, fica para pensar em casa durante esta semana.

Só na sexta-feira os leitores de alguns jornais brasileiros (Folha incluída) puderam ver a notícia de que o candidato mais cotado às eleições presidenciais mexicanas, Luis Donaldo Colosio, tinha morrido num atentado no início da noite da quarta. Os jornais da quinta tinham apenas a informação de que ele saíra ferido. Mas o diário argentino "La Nación" conseguiu estampar a morte de Colosio já em sua edição de quinta. Não há sequer diferença de fuso horário entre as edições brasileiras e argentinas, o que acentua a falha dos jornais feitos aqui. Ah, sim: o "La Nación" conseguiu incluir a notícia em seu primeiro clichê, aquele que chega no início da tarde às bancas do centro de São Paulo.

"Qualidade Total é só para o título do suplemento, é?" De maneira mais ou menos agressiva, ouvi a pergunta de pelo menos seis leitores ao longo da semana. Um deles, mais exaltado, enviou à ombudsman seu exemplar da série Qualidade Total em que diversos erros de acabamento (especialmente na separação silábica) estavam anotados. Para esses leitores, parece incoerente que um jornal com tantos problemas se dedique a publicar uma série que trata da excelência dos procedimentos de uma empresa como única saída nos mercados altamente competitivos.

Os leitores têm razão em reclamar, e a Folha erra mais do que o aceitável (comete especialmente esses erros, permitam-me dizer, bobos). Mas isso não tira o mérito da série, nem da intenção do jornal em publicá-la. Aos leitores, meu conselho depois de lerem os exemplares: pratiquem Qualidade Total contra a Folha. Jornal e leitor só terão a ganhar.

Muitos leitores atenderam o convite do domingo passado e enviaram à ombudsman exemplos de maus títulos publicados na Folha. Um deles, porém, foi o destaque da semana: "Três são linchados na frente da TV", que saiu no caderno Cotidiano de quarta-feira. "E se fosse na frente do liquidificador ou outro eletrodoméstico qualquer?", brincou um leitor de São Paulo.

Já escrevi aqui antes que a ombudsman não trata de problemas de assinaturas ou entregas do jornal, mas muitos leitores (cerca de 80 por mês) ainda usam esse "último recurso" para tentar resguardar seus direitos de consumidores. Na semana passada, um advogado de São Paulo enviou um exemplar de domingo da Folha completa e absolutamente molhado, da forma como o recolheu em seu quintal, pedindo providências. Não há como deixar de atender esses leitores desesperados em busca de uma solução. O jornal estava ilegível e foi enviado à Diretoria Executiva de Circulação como amostra de quanto a Folha ainda precisa melhorar também nesse setor.

O jornal gaúcho "Zero Hora", dirigido pelo jornalista Augusto Nunes, pode ser um dos próximos a adotar um ombudsman. Foi o que me contou o próprio Nunes, antes um crítico dessa função em seus tempos de diretor de redação de "O Estado de S.Paulo". Se tivesse encontrado a pessoa certa, garante ele, a "Zero Hora" já teria seu ombudsman. Tomara que a procura não demore muito tempo, especialmente porque o jornal prepara mudanças para os próximos dias, e Nunes garante que elas vão ser profundas e inovadoras. Assim que ocorrerem, me comprometo em registrá-la para os leitores da Folha.


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