Folha de S. Paulo


Uma história sem heróis

Até a noite de sexta-feira, 16 leitores manifestaram sua opinião sobre o episódio que, em meu arquivo, ganhou o nome de "caso Unicamp". Esses leitores escreveram cartas (11) ou telefonaram (cinco) para protestar contra o fato de que a Folha assumiu um compromisso por escrito com a universidade de só publicar a lista de aprovados no vestibular na edição de domingo, 6 de fevereiro, mas acabou rompendo o acordo e publicou a relação no dia 5. Com isso, o jornal "furou" outros quatro, incluindo aí seu concorrente direto, "O Estado de S.Paulo".

Para todos os 16 leitores, a Folha teve um comportamento antiético, irresponsável, prepotente, oportunista -os adjetivos que mais apareceram nas cartas e telefonemas. Sem exceção, eles citaram a Nota da Redação publicada no Painel do Leitor de segunda-feira, 7 de fevereiro, debaixo da carta assinada por Jocimar Archangelo, coordenador da Comissão de Vestibular da Unicamp.

Archangelo protestava ele também, e pedia "a pronta manifestação (...) a respeito da interpretação que devemos dar à carta-compromisso assumida pelo jornal Folha de S.Paulo". A resposta a ele na Nota da Redação dizia que, embora a Folha admita "em certos casos" o embargo de informações, um verbete de seu Manual da Redação reza que o jornalista tem obrigação de publicar tudo o que sabe e é do interesse do leitor -e isso justificaria a antecipação da lista. O jornal calou-se sobre a carta-compromisso.

Quem tem razão nessa história? Arrisco dizer que ninguém, a não ser os leitores. E explico: a lista já estava pronta antes de sexta-feira, 4 de fevereiro, quando a Unicamp passou-a aos jornais que pediram para recebê-la, alegando problemas técnicos, e se comprometeram formalmente a segurá-la até o domingo. Com isso, a universidade conseguiu aval em sua política cruel e sistemática de reter as listas de aprovados no vestibular por alguns dias, para a qual nunca apresentou uma justificativa satisfatória. (Caso semelhante ocorreu no exame de 91/92, quando a Folha publicou antecipadamente a lista -a Unicamp protestou mas não havia compromisso por escrito daquela vez).

Os cinco jornais, esta Folha incluída, que assinaram as cartas-compromisso tomaram uma atitude tão discutível quanto a da Unicamp. Ao aceitar enfiar essa lista na gaveta por dois dias, eles contemplaram interesses da universidade e seus próprios. Esqueceram-se dos interesses de 18.676 leitores -vestibulandos, mais seus pais, mães, parentes, amigos e demais leitores que estivessem esperando a notícia. Agiram burocraticamente contemplando ainda suas "razões técnicas" e, em vez de questionar os métodos da Unicamp, antes aceitaram submeter-se a eles. O leitor que esperasse por uma lista pronta enquanto ela dormia nas redações.

É verdade que a Unicamp é uma universidade pública respeitada, suficientemente dona de seu nariz para fazer exames vestibulares com as regras que lhe parecerem mais corretas. Daí decorre que ela pode escolher a data em que vai divulgar o resultado desses exames, mas não pode submeter a imprensa a aceitar suas preferências. Sabendo que a lista estava disponível, os jornais deveriam batalhar por sua divulgação, em nome do direito de seus leitores à informação, mas nunca aceitar seu embargo.

Em vez disso, a Folha acatou primeiro as regras da Unicamp para, depois, "chutar o balde da ética", como disse uma leitora do interior paulista. Quando foi chamada a se explicar (além da carta de Archangelo, o "Estado" fez reportagem sobre a antecipação da lista no domingo, 6 de fevereiro), a Folha deixou de responder a única questão que realmente incomodou os leitores: não disse até hoje por que razão desrespeitou a carta-compromisso.

Os outros quatro jornais não tiveram comportamento muito melhor no caso. Também assinaram o compromisso com a Unicamp, esconderam a lista e depois quiseram acusar a Folha de falta de ética no episódio. Foi como ver o roto falando do rasgado. Que ética podem cobrar da concorrência jornais que assinam cartas se comprometendo a sonegar informações a seus leitores? Que ética podem cobrar do restante da imprensa jornais coniventes com esse jogo de esconde-esconde, que só reclamam quando percebem que alguém lhes passou a perna?

A Folha errou e ainda tentou desastradamente salvar sua imagem na terça-feira, 8 de fevereiro, quando fez publicar uma reportagem em que vestibulandos da Unicamp aprovavam com entusiasmo sua iniciativa de rasgar o compromisso e publicar a lista. Sem contestações, sem o "outro lado". Mais parcial, difícil. O que o jornal conseguiu foi fazer uma apologia da "lei de Gerson", foi fazer seus leitores acreditarem que a máxima "faça o que eu digo mas não faça o que eu faço" vigora na Redação. A semana terminou sem que a Folha voltasse ao assunto ou publicasse uma das muitas cartas que devem ter chegado ao Painel do Leitor, com comentários que, a julgar pelo que li e ouvi na semana passada, não devem ser nada gentis.

Enfim, nesta história em que não existem heróis não existe, também, um só vilão. Mais do que discutir a ética do vizinho, que "chutou o balde" como bem disse a leitora, os jornais deveriam discutir sua ética própria e os acordos que andam assinando por aí. Guardar a lista de aprovados num vestibular por dois dias pode nem ter tantas consequências, além da angústia dos próprios vestibulandos e uma ou outra matrícula que não vai ser reembolsada por escolas particulares.

Mas o episódio é emblemático, e merece reflexão. O leitor está coberto de razão quando reclama da falta de ética da Folha ao romper um compromisso formal, escrito, preto no branco. Mas o que dizer de uma universidade que prolonga inexplicadamente a agonia de 18.676 vestibulandos e de cinco jornais que aceitam jogar esse jogo nas costas de seus leitores?

Numa semana recheada de protestos de leitores, quatro telefonaram para reclamar de foto publicada no alto da Primeira Página de segunda-feira, 7 de fevereiro, em que o cantor Henry Rollins aparecia com o rosto ensanguentado depois de dar uma joelhada na própria testa. "Acabou com meu estômago logo cedo", reclamou uma leitora de Santos, no litoral paulista.

Na mesma segunda-feira, na crítica interna, eu havia elogiado a foto (e a excepcional qualidade de impressão do jornal naquele dia), afirmando que ela parecia impressionante e certamente atrairia leitura. Ombudsmen, como o leitor pode ver, nem sempre conhecem as sutilezas dos leitores.

Um leitor de São Paulo, capital, pergunta por que razão esta coluna preserva a identidade dos leitores que escrevem ou telefonam. É exatamente para não criar constrangimentos em pessoas que querem dar sua opinião sobre o jornal, mas não gostariam de ver seu nome revelado. Por motivos que vão desde a timidez até o temor de que amigos não concordem com suas posições. Assim, os leitores citados aqui são anônimos mas existem de verdade. Seus nomes, endereços, idades e demais dados pessoais, suas cartas ou o relato do que conversaram com a ombudsman pelo telefone estão arquivados para qualquer eventualidade. Apenas a ombudsman e a Redação têm acesso a essas informações, e elas são usadas na tarefa diária de melhorar o jornal.

Aos leitores que querem ver suas opiniões publicadas, sugiro sempre que procurem o Painel do Leitor.

A informática, essa faca de dois gumes, continua impedindo que os dados relativos ao atendimento de janeiro possam ser resgatados do arquivo do computador. O problema técnico, pequeno mas incômodo, deve estar resolvido ainda nesta semana. No próximo domingo, publico os números.


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