Folha de S. Paulo


Quando a imprensa faz carnaval

Dezoito leitores telefonaram ou escreveram protestando contra o espaço dedicado pela Folha à cobertura do "affair Itamar" no Carnaval. Para esses leitores, o jornal deu um tom de escândalo ao namoro do presidente e da modelo, e foi sensacionalista ao publicar a foto em que a moça aparece sem calcinha (mesmo que tenha sido numa página interna). Apenas um leitor reclamou contra a invasão da privacidade de Itamar -como se fotografar o presidente da República agarrado a uma modelo num camarote do Sambódromo fosse desprezar seu direito à intimidade. Todos os outros criticaram duramente sua atitude, afirmando que o comportamento de Itamar na avenida foi desrespeitoso para com o cargo e o país.

Pelas conversas que tive, acho que o leitor refletiu no jornal uma parte de sua ira contra um presidente da República atrapalhado, que se meteu num camarote reconhecidamente patrocinado pelo jogo do bicho e ainda se envolveu com uma modelo louca para aparecer às suas custas. O escândalo, nesse caso, não foi promovido pela imprensa ou pela Folha. Aconteceu no Sambódromo e foi apenas relatado pelos jornais, que fotografaram Itamar abraçado à modelo sem calcinha que ele acabara de conhecer, e publicaram trechos de suas conversas com a moça nas quais o presidente lhe perguntava se estava namorando ou manifestava a intenção de beijar sua boca depois de elogiá-la.

É verdade que estes últimos -a falta da calcinha inclusive- são detalhes dispensáveis diante da notícia em si, a de que o presidente não entendeu direito o que foi fazer no Sambódromo, achou que estava ali como um cidadão qualquer e mandou ver na farra. Um presidente não é um cidadão qualquer, e quando Itamar confundiu as coisas os jornais passaram a ter obrigação de publicar a notícia. Como ombudsman, eu teria a obrigação de protestar se a Folha não tivesse feito isso, se tivesse privado -com a desculpa que fosse- seus leitores de saber como o presidente havia se comportado no Carnaval.

Sim, porque o leitor tem direito à informação, ainda que ela seja chocante. A imprensa não pode ter moralismo ou exercer qualquer espécie de censura na hora de editar as notícias, e não poderia esconder debaixo do tapete o fato de que o camarote de Itamar no Sambódromo mergulhou mais do que deveria no espírito da festa. Os detalhes do caso -a calcinha, o telefonema em que Itamar disse estar apaixonado e que a modelo franqueou à imprensa, os galanteios, o convite para o jantar que não houve- deixaram nos leitores a impressão de que o jornal optou pelo sensacionalismo fácil. Com razão. Esses detalhes são saborosos como acompanhamento. Transformados em prato principal, como foram servidos dias a fio, causam repulsa em leitores como os que a Folha tem -leitores de um jornal que eles chamam de "sério".

Que o jornal tenha feito uma edição barulhenta do caso na terça-feira, ocupando boa parte de sua primeira página, mais uma página inteira do caderno Brasil, é mais do que compreensível. É louvável. Que a Folha tenha insistido em publicar fotos enormes de Lílian Ramos, como fez na capa da quarta-feira, ou tenha ido entrevistar a mãe da modelo para ouvir dela que achou "legal" o encontro, é demais. Que tenha insistido no caso na edição da quinta-feira, colocando-o mais uma vez na manchete, é inacreditável. É fazer carnaval sobre um caso encerrado.

Passado o furacão da terça-feira, o leitor merecia análises do caso, e análises sérias sobre sua possibilidade (rapidamente descartada) de se transformar no pivô de uma crise institucional. A Folha teve a sensibilidade, desde o princípio, de editar a história em suas páginas de política em vez de metê-la na coluna social ou no caderno especial de Carnaval. Mas demorou para reconhecer que o namoro de Carnaval de Itamar durou tanto quanto um traque de São João. Não chegou a fazer sensacionalismo, mas exagerou. Para o leitor, é a mesma coisa.

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Outros dezoito leitores protestaram contra a coluna assinada por Barbara Gancia que saiu na edição de quarta-feira, aquela com o título "Miriam Cordeiro, verdadeira patriota". Considerando que o texto foi publicado só nesse dia, e só na Folha, sua repercussão entre os leitores foi até maior do que a da cobertura do Carnaval de Itamar.

Na coluna, Barbara Gancia perguntava: "Por que ninguém admite que esta mulher prestou um inestimável serviço ao país ao impedir que um iletrado barbudo se tornasse presidente? O Brasil merece que se utilize o método (indolor) que for para impedir Lula e seu destrambelhado saco de gatos no comando de nossos destinos por cinco longos anos."

Miriam Cordeiro, se o leitor não lembra, é a ex-namorada de Lula que o acusou, durante a campanha de 89, de forçá-la a fazer um aborto. Depois disso, melhorou de vida e diz-se que o PRN seria o provedor de sua conta bancária. Por esse comportamento nada exemplar, é detentora de um ódio nacional e suprapartidário. Os leitores que telefonaram na semana passada reconhecem em Miriam Cordeiro um belzebu aético, ainda que não tenham simpatia declarada por Lula ou seu PT.

Barbara Gancia tocou num assunto delicado ao fazer sua defesa pública. Mas, convenhamos, foi corajosa. Em sua coluna, aliás, ela faz sempre que pode a defesa de posições conservadoras e, por que não dizer, coerentes com o que pensa. É uma voz distoante na Folha mas não no país -pessoalmente, conheço gente que pensa exatamente como ela sobre Miriam Cordeiro. E por ser distoante no jornal, a colunista tem seu público e seus atrativos (diz alguém que conheço e respeito que Barbara Gancia só daria certo mesmo na Folha -no "Estado", seria uma entre mil iguais).

Barbara Gancia choca por suas opiniões mas não "chuta" dados, não mente, não engana o leitor, que aparentemente devora suas colunas (a maior parte dos que ligaram citaram textos em que ela comentava a consistência de suas fezes, a propriedade de se usar telefone celular em restaurantes ou a defesa do projeto de extensão da av. Faria Lima, que valorizaria um apartamento que possui na região). Ou seja, é bem lida no jornal, ainda que muito contestada. Não passa semana sem que a ombudsman receba uma queixa acerca de opiniões que ela tenha manifestado em sua coluna.

Na maior parte do tempo, a impressão que Barbara Gancia passa é a de que escreve "faits-divers" ("fatos diversos" em francês) e não quer ser levada muito a sério. Faz troça de si mesma, conta fofocas de seu mundo particular e gosta de nadar contra a corrente. Foi das poucas pessoas que, na mídia, defenderam Parreira quando o técnico era apontado como o pecado maior da seleção brasileira.

Num jornal como a Folha, Barbara Gancia pode escrever suas opiniões por mais absurdas que pareçam, é paga para isso e não sofre censura. Aos leitores que se sentem incomodados, meu conselho é de que abandonem sua leitura. Ou protestem contra o que ela escreve. O pluralismo do jornal, o mesmo princípio que dá a Barbara Gancia a liberdade de alinhavar suas opiniões, permite que os leitores se manifestem contra ela e não sejam, eles também, censurados no que escrevem (como vários fizeram na semana passada, encontrando espaço mais nobre que o de sua coluna, no Painel do Leitor).

A ombudsman está aqui também para garantir o direito dos leitores que se afinam com Barbara Gancia, e dos que não concordam com ela.

Amanhã, no auditório da Folha, será lançado o livro "O Ombudsman no Controle da Administração" (Edusp/Ícone), do advogado Marcos J.T. do Amaral Filho. Trata-se de um estudo bastante detalhado sobre a função do ombudsman junto a governos e organismos oficiais em diversos países do mundo. Vale a pena dar uma lida para entender como funciona esse "ouvidor-geral" em outras situações que não a imprensa.

O lançamento, às 18h30, será seguido de um debate com o tema "O Ombudsman na Revisão Constitucional", com a presença do autor do livro, do senador Marco Maciel (PFL-PE), que escreveu seu prefácio, e Carlos Valmer P.T. Silva, ombudsman do Banco Nacional. A ombudsman da Folha será a mediadora. Convites para o público estão disponíveis na portaria do jornal, a partir das 9h de amanhã.

Os dados do atendimento feito pela ombudsman em janeiro serão apresentados junto com os de fevereiro, no primeiro domingo de março.


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