Folha de S. Paulo


O sorriso do ministro

Manchete da Folha de domingo, 20 de fevereiro: "URV mantém valor de salários". De segunda: "URV será facultativa para setor privado". De terça: "URV será obrigatória para salário". De quarta: "URV para preços divide o governo". De quinta: "URV pode valer para preços básicos". De sexta: "Plano FHC vai elevar juros". De ontem: "Média de 4 meses converte salários". A de hoje, o leitor pode conferir na capa do jornal.

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Diz-se nas redações que jornais são feitos para durar um dia -na manhã seguinte, cheios de notícias velhas, estarão embrulhando peixe na feira ou forrando a gaiola do canário. Na semana passada, eles duraram menos que isso, algumas poucas horas, graças ao vai-e-vem da equipe econômica a respeito do plano para combater a inflação e colocar o Brasil na lista de países que têm moeda estável. Mas duraram só algumas horas, também, graças à sede com que a imprensa foi ao pote do plano. Atrás de uma manchete sensacional, de um "furo" que os outros não tinham, os jornais fizeram um carnaval tardio sobre as regras de implantação da URV e mais desinformaram do que informaram. O resultado da combinação entre uma equipe econômica que irresponsavelmente deixa vazar o que não está decidido e uma imprensa que irresponsavelmente transforma esses vazamentos em notícia de primeira página podia ser visto na capa do jornal carioca "O Globo" de sexta-feira: "Preços disparam à espera da URV".

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Boa parte das "barrigas" (no jargão jornalístico, notícias infundadas) publicadas na semana passada sobre o Plano FHC e as regras da URV poderiam ser evitadas. Um exemplo? O jornal "Gazeta Mercantil", especializado em economia e negócios, deu ao assunto uma cobertura sóbria ao longo de toda a semana. Aparentemente, estava sendo ultrapassado em novidades pelo resto da imprensa. Na verdade, foi cauteloso diante de um ministro que diz uma coisa hoje e desdiz amanhã com a mesma naturalidade com que exibe o que a imprensa já chama de "sorriso de aeromoça". Aquele que ela prega no rosto enquanto o avião está caindo.

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Mas os chamados grandes jornais precisam de notícias quentes todos os dias, e de manchetes vistosas. Por isso, mesmo que o ministro dissesse, como disse nos jornais de quarta-feira, que o plano é "matéria técnica" sobre a qual não queria falar, arrematando com um "não sei direito e não tenho a pretensão de ser o dono da verdade", suas declarações continuaram sendo disputadas. Mesmo que já tivessem produzido manchetes disparatadas: no domingo, 20 de fevereiro, o ministro dizia na Folha que os salários teriam conversão pelo valor nominal, enquanto "O Globo" e "Jornal do Brasil" noticiavam já o contrário, apoiados em reportagens onde "graduado
assessor" ou o próprio FHC davam as informações. O desencontro durou até a terça-feira, quando o ministro uniformizou seu discurso e anunciou a conversão compulsória pela média -uma média que não soube explicitar.

No resto da semana, o que se disse sobre a conversão de aluguéis, mensalidades escolares e de planos de saúde, para ficar em três exemplos, variou dia após dia, de jornal para jornal. Na capa de quase todos eles, lá estava o ministro sorrindo.

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Um plano econômico não nasce de repente, e é claro que tem de passar por idas e vindas, negociações e conversas, discussões e acertos antes de ser divulgado. É claro que algumas medidas dadas como líquidas e certas acabam sendo radicalmente alteradas enquanto outras sobrevivem ao debate. Toda a imprensa sabe. Por isso, em vez de dar às regras ainda em elaboração o peso de manchetes definitivas (como "URV será facultativa para setor privado", na Folha de segunda-feira, ou "Governo define conversão de salários" -pela média de oito meses-, em "O Estado de S.Paulo" da quarta), os jornais deveriam se preocupar em revelar os bastidores da confecção do plano e contribuir para acalmar os ânimos. Envelheceriam menos rapidamente, seriam mais úteis e seus leitores sairiam mais bem informados.

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Em vez de correr atrás do "furo", de tentar antecipar notícias que não existem, a imprensa faria melhor seu papel se conseguisse analisar os motivos pelos quais a equipe econômica, às vésperas de colocar a URV nas ruas, ainda não tinha claro como ela seria usada nas contas do dia-a-dia dos cidadãos. Ainda não sabia como converter salários, por exemplo. Se o leitor pudesse conhecer o que pensa essa equipe econômica, quais suas divergências e quais suas dúvidas, poderia formar um juízo acerca do plano-ele-mesmo. Se o leitor pudesse ter, através da imprensa, uma visão mais crítica do ministro da Fazenda, e uma visão mais crítica dessa sua prática de dizer hoje o que não sabe direito para desdizer amanhã, poderia entender melhor o que se passa no Brasil pré-URV. Mas a imprensa tudo perdoa em FHC, o ministro mais poupado da história recente do país, desde que os jornais puderam voltar a criticar ministros e outras autoridades.

Da maneira como a imprensa noticiou o plano FHC na semana passada, tudo o que o leitor pôde fazer foi sentar à espera das medidas que vão chacoalhar sua vida mais uma vez e jogar fora o jornal antes mesmo de terminado o dia. Afinal, para que servem jornais quando eles têm ministros sorrindo acompanhados de notícias velhas?

Desculpe-me, leitor, mas volto ao assunto Lílian Ramos. Por uma razão: a imprensa em geral, e a Folha em particular, não esqueceram a moça ainda. E sua passagem pelo camarote de Itamar Franco vem sendo tratado com uma dose de moralismo e hipocrisia que precisa ser discutida.

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A revista "Veja" que circulou na semana passada publicou uma reportagem de capa sobre o namorico do presidente e apontou Lílian Ramos como garota de programa. Para embasar sua revelação, a revista usou o depoimento de Matilde Mastrangi, uma atriz de atributos como os de Lílian Ramos, mais conhecida por atuar em pornochanchadas e participar de uma festa numa boate em São Paulo onde sua calcinha foi leiloada entre os presentes. A "Veja" usou ainda o depoimento de Enoli Lara, ex-amante do ex-ministro Bernardo Cabral, a mesma que deu uma entrevista à revista "Interview" com detalhes íntimos de sua vida sexual que desciam a minúcias sobre sua preferência pelo sexo anal. Ambas posaram de vestais na revista.

A "Veja" ouviu Lílian Ramos sobre a acusação de prostituição. Não sem antes concluir, sozinha, que ela tinha o direito de se defender em uma frase enquanto seus detratores ocuparam algumas colunas de texto, fornecendo até preços de sua tabela para encontros.

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A Folha não fez papel melhor. Publicou na terça-feira em seu caderno nobre, Brasil, em espaço idem, entrevista do cineasta Walter Hugo Khouri e do produtor Aníbal Massaini em que eles diziam jamais ter convidado a moça para fazer qualquer filme, como ela andou anunciando depois do "affair" com Itamar. Segundo Khouri, Lílian Ramos não teria "talento" para estar num filme seu. Khouri, ele próprio, não seria a melhor pessoa para definir o que seja talento, mas tirou sua casquinha no caso e praticou um pouco do esporte nacional dos últimos dias: bater em Lílian Ramos. Massaini ajudou. Lílian Ramos não foi ouvida sobre o que disseram dela.

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Na sexta-feira, o jornal publicou foto do senador Pedro Simon ao lado de Lílian Ramos na abertura do Festival de Gramado de 89. Ela, posando sorridente. Ele, visivelmente constrangido em mais uma das fotos "oficiais" a que personalidades públicas devem aceder nesses eventos. Pois não é que a Folha publicou texto debaixo da foto acusando Simon de"conhecer" Lílian Ramos desde 89, com quem "esteve" na abertura do Festival de Gramado? O mesmo texto lembrava que o senador criticou o comportamento de Itamar Franco no Sambódromo, quando o presidente encheu a atriz-modelo de carícias e ela foi flagrada sem calcinha pelos fotógrafos.

Mas, afinal, o que é "conhecer" para a Folha? Posar para uma foto ao lado de alguém num evento social é "conhecer"? Se esse alguém fosse Lílian Ramos, o fotografado já poderia ser considerado um devasso? Isso tiraria de Pedro Simon o direito de criticar a mais alta autoridade da República por seu comportamento no Carnaval?

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Lílian Ramos deu uma entrevista (ao jornal "O Globo") afirmando que nunca foi garota de programa. Saiu no sábado, 19 de fevereiro. Ninguém lhe deu ouvidos. Para a imprensa, uma moça que samba ao lado do presidente sem calcinha não parece ser direita e merece a execração pública, ainda que feita de forma torta. E sem direito a defesa.

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Não tenho qualquer simpatia por Lílian Ramos, que sequer conheço pessoalmente. Também não sinto, ao contrário de alguns, pena da moça. Acho-a esperta, e seu reaparecimento nas capas dos jornais, segurando uma calcinha enquanto dava entrevistas para jornalistas argentinos (ela foi a Buenos Aires fazer fotos nua para a "Playboy" local), prova que o "affair" cumpriu seus objetivos. A questão a ser discutida é o moralismo com que a imprensa viu a moça (e se ela estivesse usando calcinha, fosse uma artista reconhecida ou uma socialite, seria desculpada?). É mais, como escrevi na crítica interna de terça-feira: "Se a moça é prostituta, problema dela. O nosso problema é que o presidente não sabe o que está fazendo em Brasília até hoje. É disso que a imprensa deve tratar".


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