Folha de S. Paulo


Um é pouco, dois é demais

A dúvida é velha: até que ponto se pode mesmo acreditar na imprensa? Vejamos: na quarta-feira a Folha publicou a história do bancário Paulo Sérgio do Espírito Santo, acusado de abusar sexualmente de meninos. Em seu depoimento, o rapaz admitiu ter feito sexo anal com 80 garotos e disse manter "relações amigáveis" com outros 150, informou a Folha. Ele teria ainda um diário com 600 nomes anotados.

No mesmo dia, o carioca "O Globo" publicou reportagem sobre o caso com o título "Tarado confessa relações com 150". O jornal dizia que o bancário mantinha em sua casa um diário com 560 nomes. Em "O Estado de S.Paulo", o diário teria 570 nomes de garotos, todos eles aliciados pelo rapaz. Na "Folha da Tarde" os nomes eram pelo menos 580. No "Jornal do Brasil", exatos 605.

Não foi só isso. Na terça-feira, enquanto todos os jornais davam como 24 os mortos no balanço preliminar do terremoto em Los Angeles, "O Globo" afirmava que eles seriam 22. Na quarta, os prejuízos somavam entre US$ 3 bilhões e US$ 7 bilhões na "Gazeta Mercantil", mais de US$ 7 bilhões na Folha e "Estado" e subiam a US$ 10 bilhões no "Globo". Diferenças consideráveis.

Mas elas não passaram a semana apenas nos números. Na quinta-feira, os jornais noticiaram a morte de um engenheiro italiano na zona norte de São Paulo, baleado durante um assalto. Segundo a Folha, Giorgio de Kunovich foi abordado por dois ladrões, atracou-se com eles e levou quatro tiros. Para o "Estado", o homem não falava português direito, não entendeu as ameaças, ofereceu dinheiro aos ladrões e foi baleado. Na noite anterior, o telejornal "SP Já", da Rede Globo, informara que o engenheiro falava bem o português e tentava negociar com os ladrões a troca do carro por dinheiro quando foi baleado. Como a história sumiu do noticiário, ficaram as dúvidas.

Casos de polícia, uma leitura dos jornais revela, são aqueles onde aparecem mais contradições. Na quinta-feira, a Folha noticiou o ataque a um carro-forte no quilômetro 44 da rodovia Rio-Santos, no Rio, quando 15 homens levaram um valor que a empresa Brinks não revelou ao jornal. No "Globo", os assaltantes eram nove, atacaram no quilômetro 46 e levaram CR$ 14 milhões. No "Estado", eles eram cerca de 10 e deram menos sorte: levaram só CR$ 2,5 milhões.

O leitor que chegou até aqui pode estar se perguntando os motivos de o assunto ter sido eleito pela ombudsman na semana em quem a CPI encerrou seus trabalhos, o ministro Fernando Henrique Cardoso finalmente admitiu que pode ser candidato ao Planalto, batendo boca com Lula pelos jornais, e a revisão constitucional decolou. A razão é essa mesma: o noticiário está cheio de fatos importantes, que merecem ser tratados como fatos, e não como versões. Num país em que a imprensa não se entende nem sobre dados objetivos, fica fácil para qualquer um fazer o que fez FHC na semana passada: deu entrevistas a torto e a direito criticando Lula, o PT e sua falta de programa, e depois disse que não disse o que disse. A imprensa se calou diante das negativas do ministro falastrão, como que assumindo a culpa de ter dito que o ministro disse o que ele dizia agora que não disse.

O que se pode inferir, com esses exemplos propositadamente menores colhidos ao longo de apenas três dias, é que os jornais não estão informando direito seu leitor. Que cada um tenha sua linha editorial, suas preferências pessoais, eventualmente até seus amigos do peito (desde que isso fique muito claro para o leitor), é ainda tolerável. Mas que eles tenham divergências sobre dados objetivos, é inaceitável. Se um jornal não dá conta de saber quantos eram exatamente os nomes do diário do bancário Espírito Santo, como acreditar que sua tabela de rendimentos para a poupança está correta, ou que a transcrição do discurso do presidente da República é fiel? Difícil.

Mais uma vez, o que se pode inferir, com esses exemplos colhidos ao longo de apenas três dias, é que a imprensa tem muito ainda que avançar na sua objetividade antes de se render à máxima que diz que não existem jornais objetivos. Fazer bom jornalismo pressupõe procurar a verdade o tempo todo, mesmo que ela esteja na publicação pura e simples, perdida no meio de um volume imenso de outras informações, do montante levado por ladrões no assalto a um carro-forte.

Os jornais estão longe de mostrar obsessão na busca dessas pequenas verdades cotidianas, o que permite desconfiar deles quando se dizem comprometidos com a apuração total e completa das verdades maiores. Assim, é justo que o leitor pense que ler apenas um jornal pode ser insuficiente para se informar direito, mas ler dois já representa um perigo para sua sanidade mental. Nessa equação do um é pouco, dois é demais, o resultado pode ser a subtração de credibilidade da imprensa. Porque a única coisa que o leitor quer é um jornal que não manipule a verdade, tenha ela o tamanho que tiver.


Endereço da página: