Folha de S. Paulo


O direito de ter opinião

Pelo menos para esta ombudsman, a campanha presidencial já começou -e como. Na semana passada, foram oito os protestos contra dois artigos assinados pelo jornalista Carlos Heitor Cony nas edições de quarta e quinta-feira, na página 1-2 da Folha. Nas duas ocasiões, ele se ocupou de criticar Lula, a proximidade entre seu partido e a CUT, e escreveu: "O PT, como aparelho partidário apoiado no aparelho sindical da CUT, tende a repetir exemplos pouco edificantes (como o) do Partido Nazista, que, depois de um passado arruaceiro, chegou ao poder democraticamente". Isso bastou para que simpatizantes da candidatura de Lula (perguntei; todos confirmaram) telefonassem irados e fizessem seus protestos. "Depois dessa campanha que a imprensa vem fazendo contra o Lula, agora sim é que eu vou votar nele", afirmou um estudante de São Paulo. "A elite está com medo dos 30% que o Lula tem nas pesquisas. Já viu que não vai ter para o seu candidato, Fernando Henrique Cardoso, e começou a apelar", disse um professor universitário do interior paulista, que ainda fez questão de cantar ao telefone: "Lula-lá".

Cony é um jornalista conhecido, de opiniões bem lidas, a quem o jornal reservou um lugar nobre nas edições diárias. Pode escrever o que quiser naquele espaço sem sofrer restrições da Redação, menos por tudo isso do que pelo compromisso da Folha com ele e com mais de 2 milhões de leitores. Cony é um colunista de temas variados: analisa as chances do plano econômico de FHC num dia para, no outro, rabiscar uma crônica carregada de lirismo sobre o seu Rio de Janeiro. Não surpreende, portanto, que tenha decidido criticar o PT e seu envolvimento com a CUT.

Mas ao contrário do que me pediram os leitores irados, não vou comentar as opiniões expressas nos artigos de Cony. Aceitei o cargo de ombudsman da Folha porque, entre outras coisas, concordo integralmente com sua proposta de ser um jornal pluralista. Está escrito na página 20 do Novo Manual da Redação: "Numa sociedade complexa, todo fato se presta a interpretações múltiplas, quando não antagônicas. O leitor da Folha deve ter assegurado seu direito de acesso a todas elas. Todas as tendências ideológicas expressivas da sociedade devem estar representadas no jornal". Assino embaixo. Mesmo que não concorde com algumas idéias veiculadas pelo jornal, minha tarefa hoje é zelar para que opiniões divergentes encontrem a mesma acolhida. Em defesa do direito do leitor de ser corretamente informado.

Várias vezes já recebi, por telefone ou carta, protestos de leitores da Folha que não toleram ver artigos de Fernando Collor de Mello ou Emílio Odebrecht no jornal, ou ainda pedem a cabeça de colunistas como José Sarney, Delfim Netto, Antônio Ermírio de Moraes e Gilberto Dimenstein, ou Joyce Pascowitch, Barbara Gancia e, agora, Cony. Para esses leitores, a Folha deveria vetar nomes, impedir que alguns manifestassem suas idéias nestas páginas, bloquear seu acesso ao público. Em uma palavra, o que esses leitores defendem é a censura, pura e simples, de opiniões com as quais não concordam no jornal que escolheram como seu meio de informação. E convocam a ajuda da ombudsman para tanto.

Pode parecer paradoxal mas é pior que isso: é perigoso. Se a Folha se permitir censurar um artigo de Collor, por exemplo, porque não concorda com o que está escrito ali ou guarda rancor pelo processo que o ex-presidente moveu contra quatro jornalistas da casa, ela ganha argumentos imediatamente para censurar os escritos de Lula, de Betinho, do papa, da madre Teresa de Calcutá e todo o resto do planeta. Incluindo aí os leitores e suas cartas enviadas ao Painel do Leitor.

Em vez disso, a Folha tem tentado fazer seu jornalismo pluralista e, a julgar pelas reações de leitores como os que telefonaram na semana passada, está conseguindo. O jornal ainda é deficiente em muitas áreas. Publica muitos erros, às vezes se esquece de ouvir o "outro lado", seu texto médio precisa melhorar muito, suas legendas tendem ao óbvio, sua cobertura dos fatos não é 100% etc, etc, etc. Mas não se pode dizer que exista no Brasil um jornal mais aberto a idéias, e que reserve mais páginas para publicá-las, venham de quem vierem.

Num ano eleitoral (e não só nele, claro), os leitores deveriam se sentir aliviados por saber que seu jornal está comprometido com a divulgação do maior leque possível de opiniões. Para aqueles que discordam delas, o caminho é escrever ao Painel do Leitor. Concordo com os que reclamam que seu espaço nessa seção tem sido frequentemente ocupado por cartas que respondem reportagens e artigos da Folha, e o Painel do Leitor tem sido mais um "Painel dos Notáveis com Direito de Resposta" do que dos leitores propriamente ditos. Mas essa é também uma boa briga com a qual a ombudsman já se comprometeu, e este é o ano ideal para levá-la em frente.

Nada, portanto, justifica a censura às opiniões de quem quer que seja no jornal. A imprensa livre foi uma conquista dura, uma longa batalha que não pode ser esquecida. Você, leitor, discorda do que disse Cony, outro colunista qualquer, esta ombudsman? Escreva para o Painel do Leitor. Você também tem o direito de manifestar sua opinião na Folha. Tenha certeza de que, em nome do pluralismo, esta ombudsman vai defender a publicação de sua carta. E ninguém, tenha certeza também, vai censurá-la.

"Quando a manchete distorce o sentido de uma reportagem, o leitor inevitavelmente é levado a se perguntar por quê. Isso aconteceu com a entrevista da Folha de 15 de janeiro com José Fortunati (PT-RS) sobre uma palestra que ele deu na semana passada em Miami, numa conferência de investidores americanos. A manchete registra: Petista diz que vitória de Lula preocupa investidores do exterior. Em contraste, o texto informa que, embora o deputado Fortunati tenha notado uma preocupação quanto à eventual vitória petista (que quase todos acreditam ocorrerá), ele disse que os investidores participantes do encontro ficaram tranquilos e interessados em investir mais no Brasil.

Evidentemente essa distorção pode ser devida a um erro de julgamento do responsável pela manchete. Entretanto, sempre fica a impressão de que a Folha talvez não seja neutra no tratamento da matéria."

Recebi esta carta na semana passada, enviada por um leitor de Belo Horizonte. Não foi a única sobre o caso, e não há como deixar de dar razão a ele. Nas críticas internas diárias, tenho anotado outros exemplos de títulos que distorcem o sentido das reportagens que deveriam introduzir ao leitor, mas reconheço que há ainda um longo caminho a percorrer nessa empreitada. Minha avaliação pessoal é de que os títulos ainda são uma das piores coisas desta Folha.

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O Conselho Federal de Medicina baixou novas regras para os convênios médicos, em vigor desde a última segunda-feira. Imagino que os 32 milhões de brasileiros que fazem parte desses convênios devem estar tão perdidos quando eu estou: o noticiário dos jornais sobre o assunto é falho e até agora não consegui entender como as novas regras vão funcionar, se é que vão funcionar.

Durante toda a semana, insisti na crítica interna para que a Folha reforçasse essa cobertura, mas fui voto vencido. Até ontem, no momento em que escrevia esta nota, não sabia ainda que alterações haviam sido feitas no meu plano de saúde ou como pedir o reembolso para consultas com médicos não-credenciados. Enfim, senti o que os leitores devem estar sentindo. Só lamento que, ao contrário deles, eu não possa reclamar para o ombudsman da Folha. Ele teria poucas e boas para ouvir.


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