Folha de S. Paulo


Um cheiro de pólvora no ar

O tempo fechou na noite de quinta-feira, quando os telejornais entraram no ar. A notícia do dia em todos eles: os militares estavam inquietos em suas fardas e começavam a mandar recados. Falavam a favor da democracia, mas ao mesmo tempo lançavam ameaças que denunciavam a pouca paciência dentro dos quartéis. Enfim, havia uma certa apreensão no ar.

O clima foi confirmado pelos jornais na manhã de sexta-feira. Com mais ou menos ênfase, os quatro representantes da chamada grande imprensa se ocuparam em detalhar a insatisfação demonstrada na véspera pelos militares em cerimônias oficiais no Planalto. O maior destaque foi dado a um trecho do discurso do chefe do Estado-Maior do Exército, general Benedito Onofre Bezerra Leonel. Para ilustrar suas palavras, o general usou uma carta enviada por um centurião a seu primo na Roma dos imperadores, que termina com um alerta: "Cuidado com a cólera das legiões".

De que falavam os militares em seus discursos cheios de entrelinhas? Que mensagens estariam cifradas em suas declarações extensivamente reproduzidas nos jornais? O assunto tinha finalmente saído das colunas de bastidores políticos, que nas últimas semanas gastaram linhas e linhas para reportar o "ruído de sabres" que estaria sendo ouvido além dos muros dos quartéis. Na quinta-feira, esse "ruído de sabres" se transformou em discurso oficial e público, mas nem uma pesquisa minuciosa nos quatro maiores jornais brasileiros, feita na manhã de sexta-feira, poderia revelar o que tanto irritara os militares a ponto de fazê-los abrir a boca. De repente, foi como se o país vivesse ainda debaixo do regime de força comandado por esses mesmos militares, quando a imprensa muitas vezes se viu obrigada a reproduzir suas palavras sem poder chegar ao centro das questões que elas representavam.

Desta vez, entretanto, não se tratou de censura, mas de simples incompetência. Na quarta-feira, a Folha havia publicado uma manchete que dizia: "Itamar manda FHC ceder a militares". A reportagem feita pelo jornal revelava que o presidente da República mandara seu ministro da Fazenda rever um corte de 40% a ser feito nas verbas dos ministérios do Exército, da Marinha e da Aeronáutica em 1994, como forma de contribuir para zerar o déficit público combatido no plano FHC. Itamar estaria cedendo à pressão desses ministérios e tentando evitar uma crise entre o governo e as Forças Armadas.

Era disso, desse corte com o qual não concordam, que os militares falavam nas cerimônias da quinta-feira. Com algum tempero: eles queriam dizer que não aceitam mais ser submetidos a uma economia de guerra dentro dos quartéis enquanto o país gasta às largas um dinheiro que, mostra a CPI do Orçamento, nem sempre é usado para o bem comum. Os militares querem coisas simples: investir na segurança nacional, recompor os salários de suas tropas, permitir que elas usem uniformes que não estejam puídos, atirem com armas modernas em seus treinamentos e comam um rancho composto de três refeições diárias em seus turnos. Querem mais: que as responsabilidades pelos desmandos com o dinheiro público sejam apuradas e seus autores, punidos.

Era fácil entender, especialmente depois dos sinais emitidos pelos militares, o "ruído de sabres" que levou Itamar a recuar da proposta de corte. Mas a imprensa fez um carnaval irresponsável com seus discursos e identificou no ar um cheiro de pólvora que não tinha origem. Ao dar às palavras dos senhores de farda um peso desproporcional ao seu conteúdo, a imprensa "sensacionalizou" o noticiário gerado naquela quinta-feira e fez surgir temores sem razão. Tratou sem sensibilidade, histórica ou jornalística, um tema que ainda incomoda o imaginário coletivo nacional.

Pior do que isso, a imprensa deixou de fazer jornalismo. Até o momento em que esta coluna foi fechada, nenhum jornal ou TV se ocupou de investigar quanto representa o corte de 40% nos ministérios militares em dinheiro e em investimentos, e que argumentos têm as tropas para querer ficar de fora no esforço para zerar o déficit nas contas do país.

Mais: ninguém se ocupou de levantar os números para saber se os militares têm razão em suas reivindicações, ou ainda para saber se os 40% de cortes fazem diferença fundamental no equilíbrio do orçamento do governo. O leitor não sabe quanto esses ministérios perderam em verbas nos últimos anos, especialmente depois que seus comandados voltaram aos quartéis, nem o que essa perda representou para a segurança nacional. Sem conhecer esses dados, o leitor não pode avaliar se o "ruído de sabres" vale muito ou pouco.

Nesse episódio, a imprensa trocou sua missão de informar pela de ser a porta-voz de um apocalipse que não aconteceu. Até ontem, porém, não tinha avançado na direção de esclarecer seu público sobre se há ou não uma crise militar em curso, e se o país e sua democracia de fraldas correm riscos por causa disso, ou quanto os militares estão dispostos a voltar à cena inaginando resgatar um país afundado no mar de lama da corrupção. O furacão da quinta-feira tinha passado. Mas será que o leitor entendeu direito como, por que e para que lado ele soprou?


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