Folha de S. Paulo


A outra lição que vem do Ceará

A Folha e sua irmã, "Folha da Tarde", já não são os únicos jornais brasileiros a contar com um ombudsman de imprensa. Desde sexta-feira, um pequeno jornal cearense, "O Povo", também tem o cargo. Com 35 mil exemplares de tiragem e uma circulação concentrada na capital, Fortaleza, "O Povo" é o segundo maior jornal do Ceará.

Na própria sexta-feira, a jornalista Adísia Sá foi empossada e tornou oficial uma função que vinha exercendo, em caráter experimental, desde setembro. Como na Folha -o jornal que inspirou sua criação, toda a redação admite-, a ombudsman de "O Povo" tem mandado de um ano renovável, faz uma crítica interna diária, atende os leitores por telefone e carta e vai assinar uma coluna pública semanal, às segundas-feiras. Adísia Sá vai se filiar à ONO (Organization of News Ombudsmen), a entidade que reúne perto de cem desses profissionais em todo o mundo. Como na Folha, ela também vai se chamar ombudsman -e não ombudswoman ou qualquer coisa assim.

Não espanta que o primeiro jornal fora da Empresa Folha da Manhã a ter um ombudsman seja regional. Não espanta, ainda, que seja "O Povo". O jornal tem 65 anos de existência e é editado por uma empresa que só tem negócios no ramo das comunicações: além do diário, três rádios FM (Cidade, Transamérica e Tempo) e uma AM (AM do Povo, afiliada da Rede Bandeirantes de Rádio), todas em Fortaleza.

Além disso, "O Povo" tem mantido uma vocação para a independência infelizmente rara na imprensa regional. É nos jornais pequenos, mais do que nos grandes, que os acordos celebrados em nome da sobrevivência econômica e política têm desprezado os interesses de um leitor que não pode se manifestar. Somada à qualidade discutível desses jornais, essa prática transforma a imprensa regional em um arremedo de si mesma. Fora da chamada grande imprensa, e consideradas as devidas idiossincrasias dela, há pouco em que confiar nos jornais editados Brasil afora, muitos deles meros panfletos. "O Povo" se destaca nesse panorama.

Adísia Sá vai ter muito trabalho daqui por diante. O jornal que a nomeou como ombudsman tem vários dos vícios da imprensa regional -textos grandes demais com informação de menos, por exemplo, e um provincianismo traduzido na valorização de tudo o que chega "importado" de fora. O jornal ainda vive uma atmosfera de hiperconcorrência com o "Diário do Nordeste", editado pelo grupo Edson Queiroz, que controla a TV Verdes Mares (afiliada da Rede Globo) e a AM campeã de audiência no Estado (Verdes Mares), além de ser um dos mais poderosos do Ceará. Os dois jornais têm, atualmente, uma circulação equivalente, mas o "Diário do Nordeste" guarda a vantangem por ter conseguido uma implantação no interior que "O Povo" não tem estrutura para bancar. É o mesmo motivo pelo qual o "Diário" pratica preços melhores em sua tabela de publicidade, e atrai mais anúncios.

No cenário político, os dois jornais também se enfrentam. Enquanto o "Diário" ataca o governador Ciro Gomes (PSDB) em editoriais de primeira página, "O Povo" vive com ele e sua administração uma perigosa lua-de-mel -perigosa para o leitor, é claro. Vai ser mais trabalho para a ombudsman. Não se pode prever até quando isso vai durar num ano eleitoral como 94, em que Ciro Gomes pode até compor uma chapa para a Presidência da República, mais provavelmente como o vice de algum candidato. De qualquer maneira, de ambos os jornais cearenses seria desejável, já, um distanciamento crítico em relação à mais celebrada administração estadual do Brasil de hoje -e a única com contas 100% saneadas e dinheiro para investir.

Traço esse rápido perfil para que o leitor compreenda como e onde foi que surgiu o ombudsman de "O Povo". Não se trata, como não se tratou na Folha, de uma jogada de marketing ou um bicho-de-sete-cabeças transportado para dentro da redação. Tanto quanto a Folha, o que o jornal cearense quer é uma relação mais direta, transparente e produtiva com seu leitor. Para isso, vinha se preparando ao fazer um jornalismo pluralista e apartidário, corrigindo seus erros de forma visível nas edições diárias, preocupando-se com o didatismo e a quantidade de serviço que o jornal oferece ao seu leitor. De novo, coisas raras na imprensa regional. Um ombudsman -melhor dizendo, uma ombudsman- vai somar a "O Povo" credibilidade. E isso pode ser fundamental na hiperconcorrência em que ele vive agora.

Pena que outros jornais, especialmente os grandes, ainda achem o ombudsman uma bobagem. Várias vezes me perguntam, como peguntaram aqui no Ceará, minha opinião sobre os motivos desses jornais para não terem ombudsman. Acho que não têm porque ele funciona em favor dos leitores, e não dos jornais. E talvez isso não seja lá muito interessante em alguns deles.

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Adísia Sá é uma das mais respeitadas jornalistas do Ceará, onde comandou diversas redações e formou algumas gerações de novos jornalistas, dando aulas na universidade. Tem 64 anos e 38 de uma carreira brilhante. Ainda assim, é humilde o suficiente para me telefonar sempre que imagina que posso ter uma sugestão, um conselho ou uma dica para lhe dar. Conversamos muito, mas não tenho a pretensão de ter ensinado Adísia Sá a fazer jornalismo ou mesmo como ser uma boa ombudsman. Ela sabe muito mais que eu. Sua humildade é a prova definitiva de que ela tem o caráter correto -além da experiência acumulada- para o cargo. Desejo a ela paciência (com a redação) e boa sorte. Se o leitor da Folha quiser conhecê-la ou cumprimentá-la seu telefone (também fax) é (085) 234-4333. Vai encontrar do outro lado da linha uma profissional de primeira linha. Além de um bom papo.


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