Folha de S. Paulo


Lições do "denuncismo"

No domingo passado, sete páginas à frente da coluna em que a ombudsman convidava os leitores da Folha a refletir sobre o "denuncismo" que varre a imprensa, a Folha deu um exemplo pronto e acabado desse fenômemo. Manchete da pág. 1-13 do jornal daquele domingo dizia: "Empresa pagou táxi aéreo para Lula". Logo abaixo vinha a linha-fina: "O presidente do PT e Jorge Bittar viajaram em avião do filho do deputado João Alves". Como prometi voltar ao tema, e oito leitores escreveram ou telefonaram sugerindo este caso como o mais evidente da semana, vamos a ele.

Lula é hoje um dos mais fortes concorrentes à sucessão presidencial, e o único que sobreviveu, com seu partido intacto, ao escândalo do Orçamento. É claro que, por isso, tornou-se o alvo preferencial dos que têm um olho nas revelações da CPI e outro nas urnas que vão levar a Brasília. É claro que, por isso, não iriam tardar as providências para implicá-lo no mar de lama. A Folha se prestou, ingenuamente, para acelerar essas providências no domingo passado e durante a semana.

Em 1992, durante a campanha eleitoral, Lula e o então candidato a vereador pelo Rio Jorge Bittar (PT) tomaram um jatinho em direção a Macaé e Volta Redonda, para participar de comícios. O vôo foi pago por uma empresa que forneceu merenda escolar à gestão de Luiza Erundina e continua fornecendo a Paulo Maluf, a Nutrícia.

Isso só já bastaria para levantar uma suspeita contra o presidente do PT, mas o jornal insistiu em ligá-lo ao deputado mais famoso do país hoje em dia, aquele que ganhou muitas vezes na loteria com a ajuda de Deus, como disse na CPI. Não havia uma só evidência na reportagem, como não há até hoje, de que Lula e João Alves tivessem qualquer relacionamento, ou de que Lula tenha se beneficiado de uma mordomia oferecida pelo "anão" do Orçamento.

Tudo o que aconteceu foi que o petista voou num avião alugado da empresa de táxi aéreo Ajax, que na época pertencia ao filho de João Alves, Landulfo Alves. O jornal se esqueceu de que ninguém, a não ser que tenha motivos, pergunta nas empresas de táxi aéreo a quem pertence o jatinho que fretou. Mesmo assim, a Folha escreveu no domingo passado: "Os vôos de Lula nas asas de João Alves podem servir de munição para os adversários do PT".

Nem para isso serviram. A "denúncia" era tão inconsistente e a ligação entre Lula e Alves tão fantasiosa que os adversários do partido sequer se ocuparam de lançar mão delas. A Folha ainda voltou a citar a relação eventual de Lula e Alves em duas notas no Painel. Fez "denuncismo", e dos piores tipos -daqueles em que nem os inimigos podem se apoiar.

O deslize do jornal já seria grave se não se tratasse do maior e mais influente diário do país, o mesmo que tem um rígido Manual da Redação para coibir esse tipo de abuso. Já seria grave se acabasse aí. Mas não acabou. Ao noticiar que Lula viajara num avião pago por uma empresa que forneceu merenda escolar para a gestão do PT em São Paulo, a Folha se enredou em tantas desinformações que não conseguiu mais dizer ao seu leitor o que isso significava de verdade.

Bastava ter ido ao seu Banco de Dados, que funciona um andar acima da Redação, e o jornal poderia saber que a Nutrícia se envolveu, durante a administração Erundina, em denúncias de favorecimento num contrato para fornecimento de merenda escolar. É no mínimo suspeita qualquer mordomia oferecida por empresários a políticos; se essa mordomia ainda é financiada por alguém que pode ter sido beneficiado pelo político ou seu partido (e benefício, neste caso, sempre envolve dinheiro público), a imprensa tem o dever de investigar. Não foi o que a Folha fez. Pior do que isso: a concorrência também não fez.

Ao longo da semana, enquanto esquecia que Lula voara "nas asas de João Alves", o jornal se limitou a reproduzir declarações oficiais de quem prometia investigar o caso Nutrícia e o aluguel do jatinho de Lula. Mas a Folha, ela própria, não foi capaz de avançar na apuração do favorecimento da Nutrícia nem de provar se havia alguma relação entre esse possível favorecimento e a viagem de Lula no jatinho fretado. Tudo o que o jornal conseguiu foi levantar uma suspeita irresponsável contra Lula para, em seguida, permitir que ele deixasse sem explicações convincentes o fato de uma empresa estar pagando suas despesas de viagem em campanha.

A Folha prestou um desserviço ao leitor e perdeu uma boa oportunidade de fazer jornalismo ao dar essa aula de desinformação e "denuncismo".

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O que há de positivo nesse episódio é que pelo menos oito leitores o viram nas páginas do jornal e identificaram ali um exercício de mau jornalismo sob a forma de "denuncismo". Por isso, e pelo momento delicado por que passam o país e a imprensa, a ombudsman renova o convite: que o leitor fiscalize o jornal e não permita que ele faça "denuncismo", levante acusações infundadas e suspeitas levianas, não apresente provas do que noticia. Essa cobrança firme e vigilante pode fazer com que, ao final de tudo, o país e a imprensa saiam deste caso muito melhores do que entraram.


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