Folha de S. Paulo


A paulada na imprensa

Caro leitor, o plano econômico está aí. A julgar pelo que disse a imprensa nos últimos dias, o anúncio de todas as medidas não passa desta semana. Os jornais afirmam que ele vem junto com uma reforma fiscal: o plano tem um indexador diário corrigido pelo dólar, a política salarial não muda, o cambio fica liberado, acabam as subvenções sociais, os impostos sobem, a moeda continua se chamando cruzeiro real, etc, etc, etc.

Na semana passada, completei dois meses neste cargo. Consultei as críticas internas diárias que fiz como ombudsman da Folha e encontrei nelas a cobrança firme à Redação sobre a existência ou não de um plano econômico do ministro que o jornal chama de FHC. "Insisto: o leitor tem que saber se tem plano ou não tem plano. O jornal tem que dizer isso a ele, com todas as letras possíveis", escrevi na primeira das críticas internas, no dia 21 de setembro de 1993. "E o plano?" era o título de uma nota divulgada na crítica do dia seguinte. "Há plano ou não?", perguntei na crítica de 23 de setembro, e por aí afora.

Não tenho bola de cristal nem sou dada a premonições, muito menos tenho fontes em Brasília que estivessem me soprando na orelha a existência de um plano econômico que os jornais não conseguiam revelar. O que está refletido nas críticas que assinei -e, portanto, acontece há mais de dois meses- é o que vi nos jornais, nas revistas, ouvi no rádio e na TV. Há meses a imprensa fala de um plano sendo gestado no gabinete de FHC, que seria divulgado em setembro, outubro, depois novembro e enfim ficou para dezembro. Há meses a imprensa publica detalhes de um plano que nunca conheceu mas trata com falsa intimidade, e confunde seu leitor.

O diagnóstico deste caso: a imprensa esteve todo esse tempo a reboque de FHC e de seu plano de dar uma paulada na inflação. Deu curso a uma série incontável de boatos, suposições e palpites porque, na verdade, nunca teve acesso ao plano-ele-próprio nem conseguiu encostar o ministro na parede para que ele desse satisfações do que andava fazendo. Transformou vazamentos intencionais em manchetes definitivas, publicou muita coisa e desinformou mais do que informou. De certa forma, ajudou a paralisar ainda mais um país que já não consegue mesmo andar para frente. Tomou paulada no lugar da inflação e ficou sem saber o que fazer.

Nem agora, na véspera do anúncio do plano, a imprensa que está correndo atrás dele há meses consegue ser didática e explicar ao leitor, na prática, como é que ele vai funcionar. Escreve coisas como "o indexador eliminará a chamada inflação inercial e todos os outros mecanismos de indexação existentes na economia" ("O Estado de S.Paulo", sexta-feira, pág. B-1), e imagina que o leitor médio possa entender. Ou "o Tesouro fica proibido de emitir títulos para cobrir despesas" ( Folha, sexta-feira, Primeira Página), como se engenharia financeira fosse assunto cotidiano dos brasileiros.

O Brasil vive de sobressaltos na área econômica, agravados por aventuras como o confisco da poupança feito por Collor ou o congelamento imposto por Sarney, ambos para surpresa da imprensa. Tem uma inacreditável inflação que supera o 1% diário e um ministro que fala em dar pauladas nela mas não revela como -e ainda assim é poupado pelos principais jornais, revistas, rádios e televisões do país. Tem uma equipe econômica que se reúne a portas fechadas em Brasília, e cada vez que isso acontece os repórteres ficam de prontidão enquanto os especuladores engordam seus ganhos com as notícias desencontradas que vão ser divulgadas no dia seguinte.

Nesta altura, ao topar com o plano, o leitor não sabe sequer o que fazer com as economias que deixou na poupança ou se vale a pena antecipar a compra dos presentes de Natal. E a culpa disso é, sim, dos jornais que ele lê, das revistas que consulta, do rádio que ouve no trânsito e da TV com que termina seu dia. Fosse mais incisiva com o ministro da Fazenda, e a imprensa poderia ter desenhado antes e melhor o perfil desse plano. Fosse menos ávida por "furos", e a imprensa poderia ter cumprido o papel de tranquilizar seu leitor em vez de deixá-lo com o coração na mão e uma idéia na cabeça. A idéia de que, não adianta, este país é mesmo uma bagunça e só depois de divulgado o plano o cidadão que paga a conta vai descobrir o tamanho dela.

Onze leitores procuraram a ombudsman para protestar contra reportagem do jornalista Gilberto Dimenstein. Saiu na quarta-feira, com chamada na Primeira Página que dizia: "Sindicato da CUT dá verba a grupo do PT". Foi o assunto que mais reações gerou na semana passada.

O protesto dos leitores seguia quase sempre a mesma linha de raciocínio. Como pode Dimenstein, um jornalista comprometido com as idéias mais avançadas, defensor incansável dos direitos humanos, atacar o PT dessa maneira? A sensação dos leitores que procuraram a ombudsman era de que Dimenstein havia traído seus princípios -e seus leitores mais fiéis- ao divulgar uma denúncia desse quilate envolvendo o PT e, por extensão, seu candidato ao Planalto, Luiz Inácio Lula da Silva.

Chequei pacientemente com todos os leitores com quem conversei pelo telefone (e foram oito); eles se declararam militantes ou simpatizantes do PT. Alguns estavam tão decepcionados com o que leram na Folha que chegaram a partir para ataques pessoais contra Dimenstein. "Os prêmios subiram à cabeça dele", disse uma leitora de São Paulo. "É a porção tucana se revelando", afirmou um outro do interior. "Vou passar longe das colunas desse senhor daqui em diante", arrematou um terceiro leitor do Rio de Janeiro.

Já que foi o assunto mais comentado da semana, imagino que muitos outros leitores estarão esperando um posicionamento da ombudsdman a seu respeito. Aqui está: as reportagens de Dimenstein me parecem irretocáveis como jornalismo. Ele se preocupou em documentar a denúncia, ouvir todos os lados envolvidos na história e o jornal ainda publicou um fac símile dos papéis recolhidos pelo jornalista para apoiar o que ele relatava. Não me parece que Dimenstein tenha se afastado da seriedade profissional que sempre perseguiu, nem que tenha prestado serviço a alguém que não os leitores da Folha nesse episódio.

Se Lula e o PT quisessem mesmo processar Dimenstein e a Folha (idem a "Folha da Tarde", publicada pela mesma empresa), como chegaram a anunciar, teriam esse direito. A democracia elegeu a Justiça como fórum ideal para dirimir dúvidas e resgatar a verdade. Aos leitores que estão decepcionados com Dimenstein e com a Folha, sugiro que procurem a ombudsman, escrevam para o Painel do Leitor ou mesmo para o jornalista, manifestem sua opinião. Vai ser mais útil debater em público do que defender, mesmo que involuntariamente, a perigosa idéia de que transparência só é bom para os outros.

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Outros cinco leitores procuraram a ombudsman para reclamar de uma frase publicada na coluna de domingo passado, que dizia: "Lula é hoje um dos mais fortes concorrentes à sucessão presidencial, e o único que sobreviveu, com seu partido intacto, ao escândalo do Orçamento". Os leitores fizeram as mesmas perguntas: e o PSDB? E o PDT? E Brizola?

Quando li a coluna impressa, no domingo, percebi que a frase poderia gerar essa dúvida. Em nome da precisão, portanto, é necessário concordar com os leitores que incluem o PSDB e o PDT entre os partidos que escaparam intactos do mar de lama do Orçamento. Mas, também em nome da precisão, não se pode colocar o governador do Rio entre os candidatos declarados à Presidência. Leonel Brizola não se manifestou até agora.

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Outros três leitores reclamaram que a Primeira Página de quinta-feira passada identificava o acidente ocorrido no túnel da av. Juscelino Kubitschek, em São Paulo, como sendo numa "obra de Maluf". "Foi uma injustiça", disse um leitor da capital. "O acidente ocorreria na gestão de qualquer prefeito".

Pode ser. Na verdade, o jornal não responsabilizou o prefeito Paulo Maluf pelo acidente, e ainda espera um laudo técnico prometido pela prefeitura. Mas ao escrever, na Primeira Página, que a cratera surgiu numa "obra de Maluf", não há como negar que a Folha mostrou certa indisposição contra o prefeito e seu túnel.

Se tem críticas a fazer neste caso, melhor seria que o jornal usasse o espaço adequado: um editorial. Ao insistir em chamar o túnel de "obra de Maluf" no meio de seu noticiário, a Folha só conseguiu passar aos leitores a imagem de pouca isenção diante do prefeito. E ela é dispensável quando se pretende fazer jornalismo sério.


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