Folha de S. Paulo


O leitor é o último a saber

Na sexta-feira passada, em entrevista ao jornal "O Estado de S.Paulo", o deputado federal Manoel Moreira (PMDB-SP) disse tudo o que precisa ser dito sobre o escândalo de manipulação de verbas no Orçamento. Reproduzindo: "Isso não é novidade para ninguém aqui. Todo mundo sabia. A gente via deputados e senadores chegando para o José Carlos - ex-assessor do Congresso que denunciou o esquema de corrupção - e dizendo: 'Olha, será que a minha emenda vai ser aprovada?'"
Manoel Moreira, ele mesmo um dos acusados de desviar dinheiro público, foi direto ao ponto. Deputados, senadores, governadores, ministros, lobistas, empreiteiras e o mais grave de tudo, jornalistas já tinham ouvido falar do esquema que um funcionário federal, José Carlos Alves dos Santos, desnudou. A fórmula de fazer com que o dinheiro do contribuinte saísse dos cofres da União para nunca chegar a obras sociais nos recantos mais pobres do Brasil já não era novidade para muita gente. Faltava apenas alguém, como se diz, colocar o preto no branco e contar para o resto do país.
Por que a imprensa não fez isso? A pergunta é crucial, e vai ficar sem resposta. Depois de aceso o estopim em Brasília, pelo único fato que permanece sendo um mistério - o desaparecimento da mulher de José Carlos Alves dos Santos -, jornais, revistas e televisões se esforçam para passar à frente da concorrência e oferecer ao público os detalhes mais exclusivos do escândalo. Mas apenas correm atrás do prejuízo.
Ana Elisabeth Lofrano dos Santos desapareceu em dezembro do ano passado depois de jantar com o marido num restaurante em Brasília. O casal era conhecido na cidade e José Carlos contou uma história sem pé nem cabeça para explicar o sumiço da mulher. A polícia passou a investigar a vida do economista e pelo menos m bilhete do secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, mostrado pela imprensa na semana passada, revela que circulava em Brasília a versão de queima de arquivo. Ana Elisabeth saberia demais. Nem isso motivou a imprensa a investigar o homem que guardava a chave do cofre do Orçamento, tido e havido como braço direito do deputado João Alves, sobre quem circulavam rumores de irregularidades há muitos anos.
João Alves merece, aliás capítulo à parte neste raciocínio. Não há repórter de política no eixo Rio-São Paulo-Brasília-Salvador que nunca tenha ouvido histórias sobre o mais antigo dos deputados em atividade no Brasil. Dele, costumava-se comentar que era como a primavera: aparecia em Brasília em meados de setembro, a tempo de integrar a Comissão do Orçamento no Congresso e montar a planilha de gastos federais para o exercício seguinte. No resto do ano, não trabalhava.
Alves teria jatinhos, imóveis e um padrão de vida compatível com seus vencimentos de deputado federal por três décadas consecutivas. Teria também uma sorte incrível por viver abocanhando prêmios de loteria comentados em Brasília e pelo menos um caso mal explicado no passado, quando foi afastado da relatoria da Comissão do Orçamento em 1991 por ser um dos "sete anões" que estariam dando um golpe contra o dinheiro público. De novo, nem isso animou a imprensa a uma investigação.
O que foi que faltou a repórteres e seus editores? Perseverança e faro jornalístico. É muito mais fácil cobrir um caso como este ouvindo depoimentos na CPI do que juntando papéis, entrevistas, rumores e indícios para transformá-los em fatos. É muito mais fácil encontrar um José Carlos Alves dos Santos que entregue de bandeja um esquema de corrupção do que escavá-lo nos subsolos do Congresso. Assim como foi muito mais fácil ter um Pedro Collor que desse forma final a tudo o que se conversava em rodinhas de jornalistas nas redações do país inteiro.
Só para o leitor é surpresa que o dinheiro ilícito vem sendo "lavado" nas loterias com o conivência de autoridades. Só para leitor é surpresa que cidades da Bahia têm dotações suficientes para crescer 30 vezes em tamanho, mas nunca receberam o dinheiro vivo. Só para leitor é surpresa que o Orçamento da União virou, desde a reforma constitucional de 1988, um balcão de favores com recursos oficiais. Só para o leitor a lista de envolvidos nesse escândalo, políticos e empreiteiras, tem nomes novos.
É verdade que a imprensa saiu do Collorgate melhor do que entrou, pelo menos aos olhos de seu público. Mas o episódio tem particularidades que merecem ser lembradas. primeiro, foi preciso que Pedro Collor enxovalhasse o irmão numa entrevista à "Veja" para que parte da imprensa resolvesse olhar melhor o arrivista instalado no Palácio do Planalto. Depois, foi preciso que as manifestações populares se tornassem ruidosas para o que o restante dessa mesma imprensa se convencesse de que seu papel era noticiar os fatos em vez de afrontá-los, e agisse no interesse de seus leitores e telespectadores.
A história se repetiu. Aos olhos do público, a imprensa conduz uma reviravolta no mar de lama encontrado no Congresso e posa de quarto poder. Mas ela foi negligente com as evidências que tinha nas mãos e só se mobilizou depois que o José Carlos Alves dos Santos entregou-lhe a pauta pronta e acabada. Ou seja, ela ainda está distante da imprensa investigativa que aparente ser.
Não bastasse isso, ao publicar notícias que envolvem políticos e empreiteiras, a imprensa está caindo num "denuncismo" frenético. Informações pouco confiáveis acabam indo parar nos jornais e telejornais por conta desse comportamento irresponsável, que parece querer recuperar o tempo perdido. Denúncias contra quem quer que seja, mesmo que feitas por um homem como José Carlos Alves dos Santos, corrupto confesso, preso por acusações de matar a mulher, traficar drogas, portar dinheiro falso e favorecer a prostituição, são apresentadas como verdade verdadeira ao público. Essa é a imprensa que o leitor gostaria de ter?
A resposta é não. Como boa parte dos veículos não tem a saudável prática de corrigir notícias distorcidas que divulgou, o público fica exposto à desinformação e os personagens deste episódio, a injustiças que nunca serão reparadas. como o escândalo tem ramificações complicadas, o noticiário se transforma numa selva de nomes, datas e relatos sem que o leitor encontre um guia para não se perder. Como vale tudo, o chamado "outro lado" que se previna: ou fica 24 horas por dia esperando o telefonema de um jornalista para se defender, ou perde a chance de dar sua versão.
Quando esta CPI apresentar suas conclusões, por menores que sejam as consequências, elas mudarão alguma coisa no cenário do país, - e mais uma vez o leitor pensará que pode ficar satisfeito com a imprensa que tem. É provável que, de novo, ela saia do caso melhor do que entrou. É uma pena. Se o leitor pudesse perceber que foi o último a saber, certamente cobraria da imprensa empenho para que o próximo escândalo não seja mais uma triste novidade para ele, e só para ele. Que, no final, é quem paga o preço dessa desinformação.


Endereço da página: