Folha de S. Paulo


O primo, a filha e a favelada

A imprensa até que se esmera: produz manuais de redação, provoca debates sobre os limites de seu papel, discute as leis que regem suas fronteiras, elabora sua concecpção doméstica do politicamente correto. Aí, um ministro do Supremo Tribunal Federal dá sua opinião num assunto de interesse nacional, uma mulher é presa dentro de um táxi, uma outra contrata sua festa de casamento -e todo o esforço vem abaixo.

Na semana que passou, o leitor atento assistiu a um festival de vale-tudo preparado pelos principais jornais do país. Basta folhear as edições à procura de arrogância, preconceito e manipulação da verdade. Está tudo lá.

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Na terça-feira, um ministro do STF concedeu uma surpreendente liminar que acabou suspendendo o início da revisão constitucional, marcado para a quarta-feira, 6 de outubro. Com seu despacho solitário, o ministro rompeu algumas praxes do Supremo -entre elas a de compartilhar casos polêmicos com colegas de tribunal- e ganhou fama tão inesperada quanto incômoda.

Os jornais, claramente irados com a ousadia do homem, correram para cobrir o caso e se lembraram de que Marco Aurélio de Mello, o ministro, vem a ser primo de Fernando Collor de Mello, o ex-presidente, o inimigo público número 1. O que fizeram os jornais? Transformaram Marco Aurélio de Mello em inimigo público número 2.

Com mais ou menos alarde, todos eles escancararam na quarta-feira o parentesco a seus leitores. De repente, o ministro do Supremo foi colocado sob suspeição por conta do primo, contra todos os princípios éticos e de bom senso que deveriam reger o jornalismo. O caso chegou a extremos como o que pôde ser visto em "O Globo". Num de seus espaços mais nobres, o alto da página 3, o jornal carioca, que um dia já apoiou abertamente Fernando Collor de Mello, publicou na quarta-feira um perfil de Marco Aurélio de Mello com o título: "O sangue de Collor no STF". Difícil conseguir algo mais sensacionalista.

O ministro Marco Aurélio de Mello foi nomeado para o STF em 1990 por seu primo mais famoso. Além disso, os jornais não tinham o que assacar contra ele. Mas se empenharam. Lembraram que o ministro é o mais jovem do Supremo, e o que mais votos vencidos tem. Em vez de celebrar sua independência intelectual, os jornais comentaram seu caráter reservado e indócil.

O fato de o ministro ter abolido o sobrenome comprometedor em despachos foi saboreado pelos jornais. Rebaixado à condição de primo, as razões que motivaram sua liminar perderam qualquer importância. Até suspeitas de que ele poderia estar devolvendo ao Congresso a bordoada recebida pela família Mello quando seu maior expoente foi posto para fora do cargo os jornais publicaram. As chances de Marco Aurélio de Mello se explicar foram reduzidas.

Os jornais agiram mal e dificilmente vão reconhecer isso. Afinal, são editados por empresas que, como todas as outras do país, vivem ultimamente da ilusão de que a "reconstituinte" é a saída para o Brasil. Contra o ministro do Supremo e sua ameaçadora liminar, valeu tudo. Valeu até esquecer que a sessão contestada por Marco Aurélio de Mello foi a mesma que os jornais chamaram de "baderna" há duas semanas, aquela em que deputados rasgaram o projeto de regimento para a revisão, arrancaram microfones e puseram o dedo em riste no nariz do condutor dos trabalhos, senador Humberto Lucena, quando ele perdeu o controle da situação.

Na semana que passou, enquanto se discutia se haveria ou não "reconstituinte", nenhum jornal se lembrou de pedir ao Congresso a íntegra da sessão contestada pelo ministro do STF para ver se ele tinha razão. Não houve distanciamento para isso. Na sexta-feira, passado o furacão, os jornais já comemoravam em suas páginas a nova decisão do Supremo, que por 8 votos a 1 invalidou a liminar de Marco Aurélio de Mello.

Sem entrar no mérito, aqui, sobre o acerto ou não do ministro, é preciso admitir que a semana terminou mal para a imagem da imprensa. Humberto Lucena foi transformado em herói da resistência e Marco Aurélio de Mello continua sendo apenas o que os jornais fizeram dele: um primo.
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A cobertura da prisão de Neuzinha Brizola no Rio, na madrugada de quarta-feira, é mais outra mostra de que a imprensa não consegue agir com distanciamento. Pelo contrário: há interesses dentro das empresas jornalísticas muito mais importantes que o respeito à ética defendido pelos jornais vez por outra em seus editoriais.

Neuzinha Brizola é uma mulher reconhecidamente problemática. Não é a primeira vez que vai parar numa delegacia, e pode não ter sido a última. Na quarta-feira, ela deixava um morro carioca com dois amigos num táxi quando foi presa pela polícia. A partir daí, a versão se intensifica ao sabor dos interesses de cada jornal em cutucar seu pai, o governador do Rio, Leonel Brizola.

A mais apimentada está, é claro, em "O Globo", maior inimigo político de Brizola. O jornal afirmou taxativamente em reportagem na página 21 da edição de quinta-feira que Neuzinha portava 7 gramas de cocaína, tumultuou o plantão da delegacia para onde foi levada e tentou fugir duas vezes. No "Jornal do Brasil", com quem o governador também troca farpas, o caso teve alguns detalhes a mais e foi igualmente definitivo contra Neuzinha. Idem em "O Estado de S.Paulo", que ainda publicou uma foto humilhante: Neuzinha aparece sentada no chão da delegacia, recostada na grade de uma cela. Tem os olhos fechados e os braços sujos de sangue.

A cobertura mais isenta foi feita pela Folha. O jornal teve o cuidado de tratar Neuzinha como se ela não fosse Brizola. Colocou a versão da prisão na boca da polícia e não assumiu que a droga estivesse em poder da cantora. Ao respeitar seu Manual da Redação, o jornal deu a Neuzinha o benefício da dúvida. Não prejulgou nem a reduziu à condição de filha de alguém importante. Enfim, a Folha escapou do comichão sensacionalista que acomete jornais quando se deparam com a prisão de alguém como Neuzinha Brizola.

O mais esclarecedor em todo esse episódio é ver que os jornais sabem agir exatamente como fez a Folha quando seus interesses não estão em jogo. Basta conferir como foram tratados outros personagens nas mesmas páginas policiais em que Neuzinha Brizola foi condenada pelos jornais da quinta-feira. Condenada, diga-se, por nada do que os jornais têm certeza, a não ser o fato de que ela é filha de alguém de quem eles não gostam.
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Se a Folha acertou no caso de Neuzinha Brizola, errou feio ao noticiar o casamento da deputada Benedita da Silva (PT-RJ). No dia 23 de outubro, ela se casa com o vereador Antonio Pitanga (PT) e a festa está marcada para acontecer nos salões do Jockey Club do Rio.

Benedita da Silva é negra, nasceu e vive num morro carioca onde fica a favela do Chapéu Mangueira. Não mora exatamente num barraco, mas é pobre. O destaque para o fato de que ela vai se casar com festa no Jockey Club, "um dos mais tradicionais e caros do Rio", como disse o jornal, expõe o quanto há ainda de preconceito numa redação como a da Folha.

Num texto de pouco mais de 40 linhas o jornal chamou a festa de "diferente", revelou que a deputada está convidando "centenas de moradores da favela" e deu ao material destaque gráfico reservado às reportagens com detalhes insólitos. Passou despercebido ao jornal o fato de que os favelados são amigos da noiva e todas as festas, na verdade, são diferentes umas das outras.

Na crítica interna assinada pela ombudsman na quarta-feira, os jornalistas da Folha foram convidados a um exercício de imaginação. Perguntei a eles se a reportagem seria a mesma trocando Benedita da Silva por Rita Camata, uma deputada linda e loura. Certamente não. Jornais vivem de novidades, e não há novidade alguma em dizer que uma mulher branca e bem de vida vai dar uma festa de casamento no Jockey Club do Rio. Mereceria, quando muito, uma nota em coluna social.

ERREI
Ao contrário do que afirma esta coluna no domingo passado, a Folha não publicou frase em que o jornal ou o delegado Nelson Silveira Guimarães, do Deic, afirmavam terem ocorrido "apenas" 31 mortes no fim-de-semana. A ombudsman foi induzida a erro por adotar simultaneamente três procedimentos condenáveis em jornalistas: confiar na memória, consultar fontes secundárias (no caso, uma crítica interna em que registrei a palavra "apenas" em meu texto) e não checar a informação da fonte secundária com a fonte original (no caso, a edição da Folha). Ao relatar o assunto à secretária de Redação Eleonora de Lucena, a ombudsman induziu-a a erro também. A responsabilidade pela falha é, portanto, apenas desta ombudsman.

O episódio não muda minha opinião sobre a cobertura da Folha no caso, conforme relatado na coluna de 2 de outubro.


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