Folha de S. Paulo


Sobre ovos, galinhas e exclusividade

Quem deu o "furo" da semana, do mês, talvez do ano e falou primeiro com PC Farias em Londres, esta Folha ou a Rede Globo? Que "furo" vale mais, aquele construído durante meses numa relação modelar de fonte e jornalista, ou o outro nascido de um golpe de sorte de alguém que dizia estar checando informações sobre um príncipe árabe? Que "furo" tem mais repercussão, o veiculado no jornal de maior circulação nacional que pega de surpresa seus leitores pela manhã, ou o que é largamente anunciado durante todo o dia até virar uma entrevista no telejornal mais visto do país no começo da noite? Assim resumida, a questão é estéril e tem o efeito prático daquela outra que tenta discutir quem surgiu antes, o ovo ou a galinha. Pode-se passar uma eternidade perorando sobre ela, mas até o fim dos tempos continuarão existindo ovos que nascem antes de galinhas e galinhas que nascem antes de ovos. Ou seja, não se chegará a lugar nenhum. Uma omelete seria mais saborosa -e mais útil.

A imprensa conserva alguns mitos e um deles é imaginar que seu consumidor final, seja ele um leitor, um ouvinte ou um telespectador, fica impressionado com a expressão "exclusivo". É por isso que os veículos, quando se deparam com a possibilidade de ter em mãos um material de que a concorrência não dispõe, às vezes cometem bobagens. Esquecem até os preceitos mais básicos do jornalismo nessa hora.

Foi o que aconteceu na noite de quarta-feira com a Rede Globo. Uma das mais poderosas emissoras de TV do mundo gastou tempo e dinheiro na caça de PC Farias durante meses. Finalmente, encontrou seu homem em Londres. Há quem diga, mas na Globo ninguém confirma, que ela teria sido avisada do paradeiro de PC Farias pela Interpol, já que o empresário entrou legalmente na Inglaterra usando nome e documentos verdadeiros. A delação faria parte de um acordo da Interpol com a emissora, que em troca teria fornecido informações sobre José Iribarra, o agente de segurança que montou a rota de fuga de PC do Brasil e deu uma longa entrevista para a Globo há pouco mais de um mês. A versão é fantasiosa, mas nada é impossível.

Perto de meia-noite de quarta-feira (hora do Brasil), sem que se saiba como, o repórter Roberto Cabrini localizou PC em Londres. Avisou Alberico de Sousa Cruz, diretor da Central Globo de Jornalismo, no Rio, e imediatamente gravou pelo telefone um áudio-tape, ou seja, uma notícia sem imagens para o "Jornal da Globo". Nesse áudio-tape, Cabrini dizia que PC estava em algum país da Europa, sem informar qual. (É preciso entender, aqui, que um repórter age quase sempre instruído por seu editor, especialmente em casos de importância como este.)

Nessa altura, a Folha já estava sendo impressa em São Paulo com a notícia de que PC havia sido localizado em Londres. Pouco antes, por volta de 19h30, o empresário telefonara para o repórter Xico Sá, um cearense de 30 anos que passou os últimos 18 meses de sua vida andando atrás de PC, numa atuação correta e profissional que conquistou a confiança da "fonte". Desde segunda-feira, Xico Sá vinha sendo informado pela família de PC que o empresário entraria em contato com ele. "Foi uma questão de esperar", diz o repórter. "Antes de fugir da Justiça, sempre que tinha uma coisa importante para contar PC me procurava. Nosso contato sempre foi muito formal, como deve ser o contato entre um jornalista e um homem como PC."

A Globo só ficou sabendo que seu "furo" não era exclusivo na madrugada de quinta-feira, com a Folha já nas bancas 24 horas de São Paulo e tendo sido lida ao vivo no "Jornal da Bandeirantes", pelo âncora Chico Pinheiro. O estrago estava feito. "Foi um erro de avaliação", diz Alberico de Sousa Cruz. "Imaginamos que ninguém tivesse a notícia. O Cabrini ainda iria fazer a entrevista durante a madrugada e não quisemos correr o risco de alguém chegar ao PC antes do Jornal Nacional."

O que isso tudo interessa ao leitor? Que adianta saber quem chegou antes a PC Farias? Quase nada. Mas essa conclusão esconde um fato grave: a maior emissora de TV do país fez antijornalismo e sonegou informação a seu público. Do alto de sua arrogância, a Globo sabia que tinha ouro nas mãos e não quis dividi-lo com a concorrência. Tinha a notícia de que PC estava em Londres checada, bancada por um dos repórteres mais confiáveis da casa, mas não colocou no ar.

A atitude da Rede Globo é indefensável do ponto de vista ético do jornalismo, e só se explica como uma tática de marketing dispensável na maior televisão do país. Que a Globo faça suspense para aumentar a audiência de suas novelas, vá lá. Mas com notícia, o risco é outro. Desta vez, a emissora pagou o preço de sua prática de "editar" informações para o público, mas já ocorreu o contrário outras vezes, e quem se lembra do debate presidencial entre Lula e Collor veiculado à beira do segundo turno, em 1989, sabe disso.

Há mais problemas graves nessa cobertura. Na entrevista que foi ao ar na noite de quinta-feira, o repórter Roberto Cabrini garantiu que as imagens e a voz de PC Farias foram gravadas sem que o empresário se desse conta. É difícil acreditar que alguém consiga passar a perna em PC Farias. Como o empresário não queria dar entrevistas para não afrontar a Justiça brasileira, sua "ingenuidade" pode ter sido parte do acordo para falar à Globo. E o telespectador foi enganado.

Se PC não sabia mesmo que estava sendo filmado, o enganado foi ele. Mas não é o fato de PC ser um foragido da Justiça que justifica a atitude da Globo. Mesmo os bandidos têm direito à privacidade garantido por lei. Alberico de Sousa Cruz prefere não falar sobre a questão. Acha que "cada caso é um caso" na hora de decidir se um acordo pode ou não ser rompido com o entrevistado e não esclarece se havia um com PC.
Enfim, quando a entrevista de PC Farias foi ao ar, a Rede Globo se esqueceu de dizer que a Folha tinha a dianteira no caso. O jornalismo não é dado a esse tipo de amabilidades, e o leitor as dispensa porque intui que são inúteis. Repórteres vão passar algum tempo discutindo o ovo e a galinha desta história e PC Farias já mudou de endereço de novo. Mas a questão mais importante continua de fora das preocupações da imprensa. Afinal, o que é que PC tinha a ganhar quando instrumentalizou o jornal mais importante e a maior TV do país para mostrar sua cara sem bigode? Esse "furo", ninguém deu.

NOTAS
Depois que a ombudsman escreveu aqui, na semana passada, que a Folha não tem revisores de texto em sua equipe, quatro leitores telefonaram ou escreveram sugerindo que o jornal adote, então, um revisor ortográfico em seu sistema informatizado. A medida, argumentam eles, ajudaria a diminuir o número de erros do jornal.

É verdade. E a Folha já está mesmo providenciando esse revisor eletrônico desde o início deste ano. A implantação final deverá coincidir com a troca do sistema de computadores adotado pelo jornal em 1983, e há muito superado pelas novidades do mercado. "Até hoje, adotar um revisor ortográfico implicaria perder muita velocidade no sistema", esclarece a secretária de Redação Eleonora de Lucena. "No novo sistema, o programa vai funcionar sem prejudicar de forma significativa o tempo de edição dos textos."

Os testes terão início em novembro deste ano, mas Eleonora de Lucena não acredita que o revisor seja a "panacéia" para os erros. "Vamos continuar apostando em programas de treinamento dos jornalistas e cursos de português feitos dentro do jornal. Só assim, acredito, os erros vão diminuir de verdade."
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O Fórum Folha de Jornalismo e Mídia serviu para levantar uma polêmica: o "pool" de jornalistas é a melhor atitude a adotar em coberturas complicadas, em que a corrida pelo "furo" pode levar à publicação de reportagens pouco checadas, às vezes até distorcidas ou manipuladas?

A questão foi levantada pelo jornalista Luca Fazzo, 34, repórter do jornal italiano "La Repubblica", que faz a cobertura da Operação Mãos Limpas -o desmonte de uma rede de corrupção que envolve empresários, políticos e mafiosos italianos-, e já ganhou um prêmio por ela. Fazzo contou para uma platéia de 400 pessoas que os jornalistas italianos, mesmo de jornais concorrentes, se reuniam no final da tarde no auge da cobertura, para trocar informações. Ninguém tinha "furos", mas todas as notícias publicadas eram consideradas checadas à exaustão.

No Brasil, onde o "pool" é sinônimo de mau jornalismo, de corporativismo e de preguiça, a revelação de Fazzo abre uma discussão nova. Imagine o leitor se ele não encontrasse "furos" sobre a CPI do Orçamento nos jornais, mas tivesse certeza de que todas as informações fossem corretas. Seria melhor ou pior? Imaginem os jornalistas, como se sentiriam sem "furos", trocando informações quentes com colegas que eventualmente têm em mãos notícias que não valem nada. Seria certo ou errado?

A ombudsman convida à reflexão e pede opiniões. Para voltar oportunamente ao tema nesta coluna.

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A melhor frase do Fórum Folha de Jornalismo e Mídia foi dita pelo jornalista Warren Hoge, do "New York Times", para definir seus leitores e a relação que eles mantêm com o jornal -um dos mais respeitados do mundo. "Os leitores exigem de nós um nível de qualidade, de capacidade e de poder de decisão que é nossa inspiração."

Não deve existir receita mais fiel para o sucesso do "NYT". Que o leitor da Folha pense sobre isso e assuma seu papel. Só um jornal pressionado por seus leitores a melhorar se transforma num veículo de qualidade e de credibilidade indiscutíveis.


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