Folha de S. Paulo


Caso Bruno, que matou para não pagar pensão, escancara males do país

Que país é este?, perguntou um dia, em meados dos anos 1970, o então presidente da Arena, o partido que dava sustentação à ditadura brasileira, porque a oposição consentida, o MDB, não acreditava na promessa de abertura "lenta, gradual e segura" do ditador de plantão, general Ernesto Geisel.

A perplexidade do político piauiense não resistiu à indicação para vir a ser, em seguida, governador biônico do Estado de... Minas Gerais.

Já mais para o fim da década seguinte, Renato Russo compôs o sucesso da banda Legião Urbana cuja letra revelava, sem cinismo, o mesmo espanto: "Nas favelas, no Senado Sujeira pra todo lado Ninguém respeita a Constituição Mas todos acreditam no futuro da nação Que país é esse? Que país é esse? Que país é esse? No Amazonas, no Araguaia Na Baixada Fluminense Mato Grosso, Minas Gerais E no Nordeste tudo em paz Na morte eu descanso Mas o sangue anda solto Manchando os papéis, documentos fiéis Ao descanso do patrão Que país é esse? Que país é esse? Que país é esse? Que país é esse? Terceiro Mundo se for piada no exterior Mas o Brasil vai ficar rico Vamos faturar um milhão Quando vendermos todas as almas Dos nossos índios num leilão".

Que país é este que solta um assassino que, além de matar a mãe de seu filho porque era cobrado para pagar pensão alimentícia, participa do esquartejamento do corpo, não revela que fim levou o que dele restou, se é que restou, não demonstra arrependimento algum, ainda diz que sua prisão não restitui a vida da namorada e acaba contratado por um clube de futebol sem ter cumprido a pena que lhe foi imposta?

E tudo porque um ministro do STF, para exemplar a negligência de outro juiz, que sentou por quase quatro anos sobre o recurso do autor do feminicídio, determina sua soltura até que a pena seja confirmada, sem levar em conta o óbvio risco a que submete a sociedade.

Sociedade que em sua maioria repele a monstruosidade, mas que encontra em muitos não só apoio como demonstrações de admiração, em selfies pornográficas.

Ou que alega o inalienável direito da chance de reabilitação, esquecida do essencial, isto é, de que Bruno não cumpriu sua pena, solto por decisão monocrática que agride o que decidiu um júri popular.

Que país é este?

Uma jogada de marketing incompreensível do tal Boa Esporte, que jamais tinha dado oportunidade para ex-detentos entre seus funcionários, atletas ou não, o clube que se transformou no inverso da Chapecoense e que se aproveita da fragilidade moral de uma sociedade doente e tão intolerante que produz quem tolere a tortura, os ataques à cidadania e a violência mais hedionda.

Tudo tão monstruoso como inútil porque é mais provável que, diante da indignação da maioria, o recurso enfim seja julgado e Bruno volte para onde não deveria ter saído, antes mesmo de poder estrear depois de quase sete anos de reclusão.

A Justiça tarda e falha, o país se debate em meio a um tiroteio cego e nem sequer dá a esperança de que algum time, se Bruno vier a estrear, se recuse a entrar em campo porque, numa boa, esporte não pode ser cúmplice da barbárie.


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