Folha de S. Paulo


Sobre a imodéstia absoluta

Às vezes de tanto ver brilhar a genialidade nos acostumamos e deixamos de ressaltá-la.

Daí não deixar passar em branco, como se fosse mais uma, a coluna de Tostão no domingo.

Ele escreveu: "Messi, por ser retraído e contido –tatuagens recentes podem ser desejo de mudança–, por, além de fazer gols, gostar de dar passes sensacionais e decisivos, por não ser autossuficiente, não ter a imodéstia absoluta, que Nelson Rodrigues dizia ser a maior qualidade de Pelé, joga na Argentina como no Barcelona. O que é uma virtude no time catalão, a de saber esperar o momento certo para o lance individual e decisivo, na seleção, passa a ser uma deficiência, ao confiar demais no jogo coletivo, em tocar para Lavezzi, em vez de tentar fazer o gol".

Nelson Rodrigues, em seu primeiro artigo sobre Pelé aos 17 anos, anotou as respostas às perguntas sobre quem era o melhor meia e o melhor ponta do mundo. "Eu", respondeu o Rei. Que até diz só ter existido um Pelé, como Beethoven e Michelangelo.

Volto a Tostão: " Messi deverá ser eleito, merecidamente, pela quinta vez, o melhor do mundo, mas não é perfeito. Falta a ele transformação emocional, a possessão que tinha Pelé e outros supercraques, nos grandes jogos e nas dificuldades. Pelé parecia um animal acuado, tenso, quando não dava para fazer o que gostava e queria. Tentava outras soluções, como jogar de centroavante, o que fazia com enorme eficiência.

Dizem que a perfeição não existe. Seria Pelé, o maior de todos os tempos, uma exceção? Quando me tornei comentarista, crítico, procurei em minhas lembranças uma deficiência em Pelé. Não encontrei, apesar de ele ter sido melhor em algumas coisas que em outras. Pelé é o melhor atacante e o melhor jogador da história, mas não é um espetacular armador, como Messi".

Um leitor, na versão online desta Folha, reagiu, por não ter lido bem o que Mestre Tostão observou:"Doutor Tostão, me desculpe. Você foi genial no campo, porém essa crônica aí dizendo que Pelé não era armador...Discordo até a medula. Pelé jogava tudo e em todas. Do gol à ponta esquerda. Prova da armação dele foi o passe mágico para Carlos Alberto fazer o último gol do Brasil na Itália. E você estava lá. Não comentou porque não quis. Um abraço".

Ora, Tostão mencionou que Pelé não foi um armador tão espetacular como Messi, não disse que ele não era um excelente armador.

De tudo, quero realçar dois aspectos: a brilhante observação sobre a "transformação emocional, a possessão que tinha Pelé", que o distingue do genial Lionel Messi; e a irritante modéstia de Tostão que sempre diz que Romário jogaria em seu lugar na Copa do Mundo de 1970.

Como outro gênio, o holandês Johan Cruijff, Tostão, com sua inteligência privilegiada, fazia seus companheiros jogar para acompanhar sua arte minimalista, tantas vezes exposta com apenas um toque na bola.

A mesma que revela em suas colunas.


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