Folha de S. Paulo


Legados e autoengano

No centro de imprensa do Castelão, o colega americano com quem eu havia conversado antes da Copa, e feito críticas à bagunça vigente, se aproxima de braços abertos e sorriso nos lábios, exclamando: "Bendita hora em que a Copa veio para o Brasil!".

Ele acabara de chegar de Manaus e estava extasiado com o estádio e com a facilidade de locomoção para chegar e sair dele, além de encantado com as populações ribeirinhas, "tão pobres, mas tão felizes".

Foi então que travamos o seguinte diálogo:

"Você sabe qual é a capacidade do estádio?", perguntei.

"Sim, pouco mais de 42 mil pessoas", ele respondeu.

"Pois é, e o Campeonato Amazonense todo reúne menos de 42 mil torcedores, com média inferior a 700 por jogo. Depois da Copa vai virar elefante branco", expliquei. E acrescentei: "Além do mais, você não teve problemas com o trânsito porque foi feriado em Manaus" –na verdade, ponto facultativo, mas simplifiquei.

Entre surpreso, curioso e cínico, ele retrucou: "O estádio vai virar elefante branco? Problema de vocês, não meu!".

Só então caiu a ficha que depois ficaria ainda mais clara: o mundo adorou a Copa e não é problema dele o que ficou como herança para os nativos.

A Fifa acaba de dizer o mesmo ao repórter Jamil Chade depois de contabilizar a cifra recordista de R$ 8,4 bilhões de saldo com a "Copa das Copas": não quer nem saber se estádios como os de Manaus, Brasília, Cuiabá (que até fechado já esteve) e Natal estão às moscas, para não falar das confusões que envolvem o Maracanã e a Arena Corinthians –e nem mencionar que até o Pacaembu corre o risco de virar um elefantinho branquinho.

Lembremos, ainda, que o ex-ministro da Fazenda, Guido Mantega, justificou, em agosto do ano passado, parte da recessão vivida pelo país em função da desindustrialização causada pelos feriados durante a Copa.

Lembremos, também, que o prestidigitador ministro do Esporte, Aldo Rebelo, que prometia estádios repletos pós-Copa porque multiusos, agora esconde seu mutismo e o jogo na Ciência e Tecnologia.

Tudo problema nosso, não dos gringos, é claro.

A história se repete a menos de 500 dias dos Jogos Olímpicos no Rio.

As autoridades mentem e douram a pílula. Acredita quem quer e há quem queira, feliz da vida.

Não há atrasos, os gastos estão controlados, só falta alguém dizer que será a "Olimpíada das Olimpíadas" para termos mais uma piada pronta.

Carlos Nuzman, o cartola que bateu o recorde de acúmulo de cargos na era olímpica moderna de mais de um século, ao juntar a presidência do COB com a do Rio-16, diante da constatação de que a Baía da Guanabara não será despoluída como um dos prometidos verdadeiros legados dos Jogos, saiu-se com mais uma frase de seu vocabulário sem pudor, ao repórter Silvio Barsetti: "As águas nos locais de competição são iguais para todos. Os melhores vão ganhar".

Ou seja, para ele, no mar ou no esgoto, dá no mesmo.


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