Folha de S. Paulo


Réus podem ser candidatos a presidente da República?

A crise política atual e a consequente incerteza sobre o quadro eleitoral de 2018 alimentam inúmeras dúvidas sobre quem serão os candidatos à Presidência da República no ano que vem. Mais do que isso, a pergunta que surge cada vez mais enfaticamente é: quem poderá se candidatar? E ainda mais especificamente: um réu pode disputar a Presidência da República? Apesar da nebulosidade do cenário, ou talvez por causa dela, perguntas como essa têm gerado falsos debates.

O tema ganhou destaque por causa de Lula, líder nas pesquisas eleitorais e réu no âmbito da Operação Lava Jato. Mas ele não é o único nessa situação. O segundo colocado na última pesquisa Datafolha, Jair Bolsonaro, também é réu, em ação no Supremo. E outros pré-candidatos podem também virar réus, nos próximos meses, por conta das dezenas de inquéritos em andamento, principalmente depois das delações premiadas de executivos da empreiteira Odebrecht.

A lista de réus-candidatos tende a crescer. Proibi-los de concorrer significaria, na prática, transferir para as mãos de juízes e de tribunais a definição de quem os partidos podem lançar como candidatos em 2018, solapando suas legítimas estratégias de disputa de poder.

A tese ganhou destaque porque ministros do Supremo divergiram sobre isso ao discutirem o tema "em on" e "em off" na imprensa. Declarações anônimas e públicas que, somadas, já representariam alguns votos em uma eventual ação no Supremo.

Nos autos, a maioria dos ministros do Supremo já votou no sentido de que político-réu pode ocupar cargo na linha sucessória, mas não poderia efetivamente assumir a Presidência da República. Então pergunta-se: se um réu não pode ocupar provisoriamente a Presidência, poderia um réu se candidatar e ser eleito para exercer o mandato?

Há, no entanto, dois problemas fundamentais com essa tese.

Em primeiro lugar, ela nasce do desejo de estender uma proibição não expressa na Constituição e que já nasceu da interpretação criativa de parte dos ministros do Supremo para uma outra situação, já regulada pela Constituição, a qual estabelece que, uma vez eleito, o presidente da República tem imunidade temporária a persecução penal por fatos alheios ao exercício da função, não podendo ser responsabilizado por eventos ocorridos antes de assumir a presidência.

Assim, estender essa interpretação criativa para aplicá-la a candidatos exigira uma imensa ginástica interpretativa.
Primeiro movimento –já em curso: a Constituição estabelece que o presidente que é alvo de uma denúncia aceita por crime cometido no exercício da função é afastado por 180 dias do cargo até o julgamento pelo Senado. Se o presidente-réu não pode exercer o cargo, o presidente do Senado que é réu também não poderia exercê-lo. Este foi o entendimento do Supremo em julgamento de uma liminar em dezembro do ano passado.

O segundo movimento: se o presidente do Senado ou da Câmara que é réu não pode exercer o cargo mesmo que provisoriamente, poderia um réu ser candidato, eleito e exercer por quatro anos a Presidência da República? Esse novo giro argumentativo transformaria uma interpretação inovadora da Constituição em uma nova cláusula de inelegibilidade.

A Constituição, afirmam os juristas, é um documento aberto. Mas será inesgotável?

O segundo problema é que já existe hoje uma lei que regula essa questão: a Lei da Ficha Limpa. Caso algum presidenciável tenha sua condenação em primeira instância confirmada em grau recursal —ou, para aqueles que tem foro privilegiado, seja condenado diretamente pelo Supremo –ele ou ela será automaticamente inelegível.

Só que a Ficha Limpa previu especificamente que a inelegibilidade só ocorre após decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado. E por bons motivos. Sem isso, a proibição limitaria gravemente a presunção de inocência, tornando talvez a lei inconstitucional. Afinal, como proibir de ser candidato alguém contra quem não há nem sequer uma condenação ou apenas uma sentença de um juiz individual?

Diante de tudo isso, e sem qualquer ação em que se discuta esse tema no momento, por que estamos falando dessa tese? O fato jornalístico, em si, foi gerado por ministros do Supremo discutindo o tema nas páginas dos jornais. Mas o pano de fundo é o desejo de que este ou aquele político não seja candidato. A quem interessa que o judiciário defina quem pode ou não ser candidato à Presidência? Quem ganha com a antecipação desse tipo de posicionamento na imprensa? Quem tiver contas a acertar com o Judiciário, mais cedo ou mais tarde, deve pagar. E, se mesmo assim puder ser candidato à Presidência, terá pela frente o implacável julgamento das urnas. Nada mais democrático.


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