Folha de S. Paulo


Velozes ou míticos, trens são sinais de progresso que não temos

Li recentemente notícias sobre a comemoração dos 20 anos do novo desenho das locomotivas do Shinkansen, o trem-bala japonês que desenvolve velocidades incríveis, com uma eficiência e pontualidade absurdas, e ainda por cima com uma beleza que segue atual.

Não esqueço a primeira vez em que o vi ao vivo, à nossa espera na estação de Tóquio. Fiquei boquiaberto com sua beleza, suas curvas melífluas, uma versão adocicada do que foi, nos ares, o então superaerodinâmico e supersônico avião Concorde.

No lugar da imagem robusta e intrépida (condizente com as toneladas que tinha que arrastar até mesmo ladeiras acima) que tiveram as locomotivas do passado, essa japonesa sugere inteligência e sutileza, mais que força bruta. Sua leveza de formas, explica a matéria, foi justamente inspirada no bico fino de um pássaro, o martim-pescador.

Também havia visto, tempos atrás, um documentário que mostrava sua fabricação. Como nos carros de luxo, suas curvas sutis são conferidas não somente por aparelhos de precisão, mas também pelas mãos humanas.

Um técnico ou designer acariciando uma Ferrari tem um quê de sensual -são até corpos de tamanhos semelhantes. Já aquele que acaricia, em êxtase, as curvas sutis de uma enorme locomotiva, demonstra melhor o que significa o gesto: a comunhão do homem com a máquina, a junção do criador com a criatura, o gesto da mão humana completando uma obra tecnológica que é também sua criação.

No fundo, a mesma extensão da mão humana que sempre existiu. Os exploradores do Velho Oeste americano construíam seus cavalos de ferro com a robustez necessária para encarar longuíssimas viagens ao longo de sol ou neve, além de estarem preparados para enfrentar as populações locais cujas terras estavam usurpando.

Os trens europeus, na lógica produtiva do nascente capitalismo local, pautavam-se pela eficiência –até hoje, mais do que conforto, populações inteiras (e hordas de turistas como eu) beneficiam-se antes de tudo da praticidade do transporte, que pode ser barato também.

Claro que em todas as linhas sempre houve vagões de luxo, primeira classe, carros-dormitórios e restaurantes, alguns bem confortáveis. Mas sempre foram a cereja de um bolo que, de resto, era simples -mas sempre superior, por exemplo, ao desconforto dos aviões de hoje.

Dessa cereja provei, anos atrás, o ícone chamado Expresso do Oriente, que agora é personagem do filme baseado no clássico de Agatha Christie –"Assassinato no Expresso do Oriente". Só o conheci depois que, comprado pela rede hoteleira hoje chamada Belmond (dona, no Brasil, dos hotéis Copacabana Palace e Cataratas ), foi restaurado e recuperou parte de sua antiga rota (usei o trecho Veneza-Paris).

Aqui, mais uma vez, a mão do homem era evidente. Se não na tecnologia das composições, mais no artesanato, nos acabamentos dos vagões, das cabines-dormitórios (sem banheiro, o que hoje seria démodé, mas com pia e toalhas bordadas), do mobiliário e louças dos restaurantes. E da comida, de boa qualidade, feita com ingredientes frescos reabastecidos a cada estação.

Um misto deste artesanato, deste trabalho manual e da mais alta tecnologia é o que nos premia com artefatos como o Shinkansen (e trens-bala que existem também em outros países). No Japão, ele comete proezas como nos levar de Tóquio a Kyoto (450 quilômetros, mais do que São Paulo-Rio) em pouco mais de duas horas! E não precisa chegar duas horas antes para fazer check-in, como nos aeroportos...

Tantas qualidades nos repõem o drama de constatar que, num país da imensidão do Brasil, não existe malha ferroviária que desloque o número necessário de pessoas e cargas com velocidade, eficiência e sem poluição. Triste produto da perversa aliança das indústrias automobilística e do petróleo com a estupidez gananciosa dos governantes. Nem é preciso argumentar o quanto a existência de trens é um sinal de progresso.


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