Folha de S. Paulo


Noite fresca da gentil Montevidéu amenizou perda de meu primo-irmão

Keiny Andrade/Folhapress
Por do sol em Punta Carretas, em Montevidéu, no Uruguai
Por do sol em Punta Carretas, em Montevidéu, no Uruguai

Aí uma hora chega aquela última viagem. A definitiva.

A última me atropelou neste domingo.

Aqui estou em Montevidéu, viajando pelas vinícolas do Uruguai. Tinha um jantar marcado com uma amiga jornalista e uma famosa enóloga, "madame Tannat". O restaurante, Manzanar, é de um dos donos do Parador la Huella, próximo a Punta del Este. (O La Huella é uma espécie de Fasano/Gero: por sua excelência, tem sempre alguém que saiu de lá abrindo algum restaurante que o toma como referência. Mas no caso do Manzanar, é de um dos donos mesmo.)

O que me faria cancelar, como o fiz, este jantar em local promissor e com boa companhia? A abrupta notícia de que meu primo mais velho, o jornalista e publicitário Franco Paulino, figura histórica da bossa nova, havia muito morando no Rio, embarcara na última viagem.

Um primo-irmão na acepção mais radical: além de primo em primeiro grau, ele foi criado por minha mãe, bem antes que eu nascesse.

Apesar de mais velho, era conhecido na família pelo diminutivo: Franquinho. E também pelos amigos. Chico Buarque, seu padrinho no primeiro casamento, assim o chamava. Tom Jobim também –mas recebia otroco: meu primo só o tratava por Tomzinho.

Amoroso, cheio de filhos e amigos, se dirigia a todos com voz macia e palavras carinhosas. Ao piano, tocava de ouvido acordes de jazz e bossa nova. Aos 20 anos era o influente crítico de música do jornal "Última Hora" de São Paulo, e compôs o júri dos famosos festivais da canção dos anos 60.

Então engrossou a leva de jornalistas atraídos pelas agências de publicidade para ganhar dez vezes mais. Virou diretor de criação premiado, chegou a abrir agências próprias, mas que não vingavam muito. Franquinho tinha talento de sobra, mas não a ferocidade de rapina, a ambição cega, a paixão insaciável pelo dinheiro que move os empresários da publicidade.

Meu amoroso primo se foi; eu fiquei perdido e impactado no quarto estrangeiro de hotel. Desmarquei com minha amiga, "falleció un primo querido en Brasil. Estoy triste. Ya no tengo ganas de comer. Ni seré buena compañía. Me quedaré en el hotel. Disculpe por eso".

Horas depois o quarto ficou pequeno. Olhava para o laptop e lembrava que, como não tinha vontade de comer, menos ainda tinha ânimo de escrever uma introdução de um livro que já estava atrasada, começar um artigo para uma revista americana, responder a uma dezena de emails ou escrever a coluna para "Turismo" (esta).

Amargando a perda de uma pessoa querida, e que ademais era o último elo próximo da minha vida passada (ele tinha convivido com minha mãe e meu pai mesmo antes de mim), achei mais saudável sair um pouco.
Caminhei até um pequeno restaurante perto do hotel, o Trouville. Ele representa uma instituição da cidade: locais simples e baratos (como o histórico Facal e o Sportman, no centro), animados, com pizza e sanduíches, mas também com massas e carnes.

Ali a clientela busca as pizzas, especialmente com fainá, um hábito exótico também porteño (é um disco de farinha de grão de bico assado no forno, que colocam em cima da pizza, formando uma espécie de sanduíche –achou apetitoso?).

Mas o item campeão é o chivito. Uma churrasquinho de tudo (além da carne, vale colocar presunto, queijo, pimentão, tomate, ovo cozido). É bizarro, mas foi onde mergulhei meu estupor, banhado em vinho nacional barato.
Enquanto isso observava uma bela mulher com seu filho adolescente numa mesa; um casal com duas crianças pequenas em outra; e me convencia de que no meu caso, com filhos que ainda acalento, melhor ir driblando esta última viagem, e tocando as outras que não param.

Na entrada da primavera, depois de alguns dias chuvosos, o ar estava limpo e fresco, com uma lua crescente no céu. A calma noite da gentil Montevidéu me confortou, e voltei para meu laptop. Muito ainda está pendente, algo não se reatará jamais –mas esta coluna, ao menos, chegará a você no horário.


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