Folha de S. Paulo


Devemos uma boa vida e uma boa morte aos animais que nos alimentam

Valentina Fraiz

Leio no site da BBC Brasil sobre veganos que voltam à sua natureza onívora para reparar os danos que a dieta sem animais lhes produziu. Não comer proteína animal requer um árduo planejamento das refeições para compensar deficiências alimentares -mas, mesmo entupindo-se de vitamina D e injetando-se avidamente hectolitros de vitamina B12, muitos terminam debilitados, como mostra a reportagem.

Ainda que seja antinatural e perigoso, o veganismo levanta uma questão que me toca muito: a do respeito pela vida animal. Sempre comemos seres vivos, e por eles fomos comidos. Aliás, para desespero vegano, a ciência tem demonstrado que as plantas, donas de um sistema de certa forma análogo ao neurológico dos animais, sentem pânico ao serem cortadas, avisam seus semelhantes, tentam escapar...

Não me agrada o sofrimento dos animais. Até presenciar a pesca, naquela luta desigual pelo sufocamento do peixe, me incomoda. A comida tem que ser respeitosamente tratada desde o início. A indústria pecuária sempre cometeu atrocidades que, ainda bem, vêm sendo minimizadas até por exigências de qualidade das potências compradoras: animais bem tratados e abatidos sem sofrimento produzem carne melhor. Todo mundo sai ganhando.

Meu pai cresceu num sítio numa povoação no agreste pernambucano. Era rodeado pela natureza e pela naturalidade no trato com os animais, fontes de companhia, de transporte e de alimento. Já adulto, em São Paulo, comprava aves vivas (frangos ocasionais, perus do Natal) para deixá-las no quintal e abatê-las em casa.

Mesmo numa confortável casa da classe média urbana, presenciei inúmeras vezes o trabalho letal executado por uma gorda empregada de um negror reluzente: limpo, preciso, eficaz, sem chances de sofrimento ou arrependimentos.

E tenho constatado que, como no interior de Pernambuco, há pelo mundo uma mentalidade que evolui no trato dos seres vivos que nos alimentam.

Numa bela propriedade na Toscana, na Itália, local histórico transformado em hotel (o Villa Ferraia), o porco era abatido no chiqueiro com um único e certeiro tiro na cabeça: não percebia do que se tratava, e os animais ali em volta ignoravam o sucedido, seguindo sua vidinha de engorda.

No Japão, a imagem de uma tradição de crueldade pode ser reforçada no mercado Tsukiji, onde peixes são manipulados de forma que parece dolorosa -como a retirada das escamas enquanto ainda se contorcem. Mas na verdade usam o iki jime, que hoje se propaga entre pescadores conscientes no mundo todo: uma incisão diretamente no cérebro dos pescados, que tira instantaneamente a dor e a vida, mesmo que o corpo continue reagindo (a técnica se completa com a retirada, num rápido movimento, do nervo espinhal, evitando contrações).

Durante uma caça na Normandia francesa, em que eu, gravando meu programa de TV, exibi toda minha incompetência, finalmente acertei uma única perdiz (apesar do bando numeroso, e da espingarda que espalhava bala para todo lado). Quando o cachorro a trouxe, percebi que ainda se mexia. "Ainda está viva!", exclamei. "Não por muito tempo", esclareceu o guia caçador, com um movimento rápido no pescoço da ave. Antes assim.

Uma relação respeitosa com os animais não significa ignorar que estão destinados a nos alimentar, como ficou claro quando visitei, na Bélgica, o patriarca da família Dierendonck -que cria em seu sítio, matura em seu frigorífico, vende em seu açougue e serve em seu restaurante a raça bovina local (a rara vermelha de flandres ocidental).

Caminhando pelo sítio, ele chamava as vacas pelo nome, e no estábulo do touro, pulou a cerca e conversou com ele enquanto o acariciava. Contou que, já velho, o animal seria substituído por outro mais jovem. Imaginando se ele teria uma aposentaria bucólica por ali, perguntei qual seria seu destino.

"Carne moída", respondeu o criador, sem deixar de afagar o amigo. "Com essa idade, não serve mais para steak."


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