Folha de S. Paulo


Não saber de que lado vem o sol até hoje me incomoda

Valentina Fraiz
Ilustra coluna Josimar 31.08.2017

Meu primeiro estalo se deu em Fortaleza. Era ainda um jovem universitário que cresceu em São Paulo, entre ruas e prédios que escondiam a natureza. Pela primeira vez passeando no Ceará, precisei de ajuda para encontrar um endereço.

"Pegue aquela rua, caminhe para o poente e chegará lá", respondeu uma moça que, sem perceber meu olhar atônito, ficou espantada com minha pergunta seguinte: "Mas... pra que lado eu vou mesmo? Onde fica o poente???".

Eu àquela altura já achava que sabia um monte de coisas sobre a vida, a arquitetura (que eu estudava), as relações humanas... e vi que algo tão básico (na vida, na arquitetura, até nas relações humanas) -ou seja, onde nasce e se põe o sol todo santo dia- era algo de que eu não fazia ideia.

Fortaleza está longe de ser uma cidade pequena. É um centro urbano, não um vilarejo rural onde os influxos da natureza afloram descaradamente a cada árvore da trilha, a cada canto do galo, a cada brisa vespertina.

Mas tem o marzão ali ao lado, o que já seria uma referência geográfica que eu aceitaria com naturalidade.

Da mesma maneira, para quem está em Santiago do Chile é fácil ter noção do norte e do sul, bastando olhar para que lado está a cordilheira (que, especialmente nesse trecho, gentilmente se estende em respeitosa verticalidade em relação aos pontos cardeais, como se fosse um ponteiro de bússola ereto em direção ao norte).

Mas em Fortaleza a simpática jovem não se referiu à orla, ao evidente mar. Ela falou do movimento do sol. Ela utilizou o poente como ponto de referência. E desde então me incutiu esta inquietação na vida.

De onde viemos e para onde vamos não é dúvida que me assalte, mesmo porque a resposta é simples e sempre a mesma (do nada ao nada). Já esta nova questão -de onde vem e para onde vai o sol- nunca mais me abandonou: em relação a nós, a resposta muda, a depender do lugar em que estamos.

A cada cidade em que chego, consulto mapas -onde está o norte? O nascente? Fico invejando cidades como Nova York, em que mesmo as placas de rua já vão desvendando o mistério, cuja resposta já vem embutida nos endereços. Como ninguém nunca pensou nisso em São Paulo? Em Brasília pensaram.

Verdade que na vida prática das grandes cidades isso não chega a fazer muita diferença. Mas alguma faz. Para o arquiteto que eu acreditava estar latente em mim na viagem a Fortaleza, é crucial entender o caminho do sol pelo céu (que muda a cada dia) antes de desenhar um edifício.

Para quem habita as obras já prontas, é importante saber de que lado bate o sol em cada momento, para ajudar a aquecer ou refrescar o ambiente. Mas, fora isso, se não tivermos hortas domésticas, de resto muda pouco saber o movimento dos astros.

E mesmo assim hoje me conforto sabendo. Mesmo caindo nos pequenos truques da geografia, que tento explicar aos pequenos.

Por exemplo, no litoral brasileiro, quantas vezes já não declarei às crianças que, se formos mar adentro em linha reta, chegaremos na África, mesmo que a cada final de tarde o sol se ponha gloriosamente no horizonte do mar à nossa frente (então a África fica no poente, ou seja, a oeste do Brasil??).

Mas os recortes matreiros da nossa costa nunca tiraram a poesia que está tanto na fantasia de sair nadando até o próximo continente quanto no esplendor do pôr do sol sobre as águas.

Pensar na terra girando e no sol transitando na contramão me dá diariamente uma certa e reconfortante ilusão de conexão com a natureza.

Viemos e iremos para o nada, mas, enquanto estamos aqui, seria bom se conectar com o universo. Mesmo quando dentro de casa, imerso num livro, num copo de vinho ou num corpo amado, gosto de pensar que faço parte do mundo lá fora e dos meus semelhantes.

Um mundo no qual, para começar, compartilho pelo menos a verdade universal de que, todo dia, cada dia nasce brilhando aqui desse lado, ó, e morre bem ali. No poente.


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