Folha de S. Paulo


Felipe Ehrenberg era tudo o que o México tinha de melhor

Alexandre Rezende/Folhapress
SAO PAULO, SP, BRASIL, 26-01-2012, 16:00h. O artista mexicano Felipe Ehrenberg Enr'quez, que ha doze anos vive no Brasil, em seu atelie no bairro de Pinheiros. (Alexandre Rezende/Folhapress ILUSTRISSIMA) *** EXCLUSIVO FOLHA ***
O artista mexicano Felipe Ehrenberg, falecido em maio deste ano

Tanta coisa a pensar e dizer sobre o México. Mas ultimamente, é uma pessoa que me vem à cabeça e ao coração.

O cartão de visitas anunciava seu ofício: "neólogo". Para seu país, para o Brasil, onde esteve radicado por 13 anos, e para tantos outros lugares onde expôs, era o provocador artista plástico Felipe Ehrenberg. Que passou a fazer falta ao mundo em 15 de maio, depois de anos toureando habilmente um câncer.

Nas duas últimas vezes em que estive com ele, na Cidade do México, a doença estava instalada, mas em nada abalava seu espírito inquieto ou seu sorriso afetuoso, enquanto falávamos de arte, de música, de comida, de amigos comuns, do golpe que abalava a política brasileira ou os descaminhos da política mexicana.

Consagrado em seu país, Felipe teve uma passagem marcante pelo Brasil, onde chegou em 2001. Com sua mulher Lourdes Hernández-Fuentes, escritora e cozinheira, fez da residência oficial do Adido Cultural do México (seu posto na época) um fervilhante ponto de encontro intelectual em São Paulo.

Eram almoços e jantares inesquecíveis: Lourdes começava na cozinha enquanto Felipe entretinha os convidados com conversas inspiradas, até que ambos se misturavam a nós entre goles finais de tequila e mezcal.

Quando deixou o posto (desfecho precipitado por sua atuação, em cenas com sexo e sem roupa, no inquietante filme "Crime Delicado", de Beto Brant), a cidade não perdeu a chama do casal. Passaram a servir cozinha mexicana em moldes profissionais, para alegria dos que pagavam de bom grado para serem recebidos em sua Casa dos Cariris.

A cozinha de Lourdes tinha magia que hipnotizava os convidados –mas contava para isso também com a encantadora modulação das ideias emitidas por Felipe.

A branca tez da cabeleira e do bigodón sempre emoldurando um cigarro de palha contrastavam com a anarquia impressa nos seus dedos, que exibiam ossos tatuados. Aquele desfaçatez com o esqueleto, com a morte, era puro México; mas tanto quanto as tatuagens, brilhava seu jeito de sorrir: era pleno de afeto e acolhimento. Deve ter sido sempre assim, mas deve ter aumentado no Brasil, onde a reserva de carinho e hospitalidade parece resistir a todas as provas.

Lourdes e Felipe voltaram ao México em 2014. Lá os encontrei, em 2015, para comer no melhor lugar possível: a casa deles. Levei charutos para fumarmos, ganhei um livro sobre a carreira do neólogo e mostrei a eles, com o celular precariamente ligado ao velho equipamento de som, as primeiras músicas, ainda sem mixagem, do CD "Soft Apocalipse" de minha filha Marina Melo.

Felipe ficou emocionado com as canções. E se deteve especialmente naquela que é também minha preferida, "Poeira", que aborda sabiamente a passagem do tempo e o envelhecer: "Mas se o tempo é tão impiedoso / pra que lhe pedir piedade? / Por que não rimos pras rugas e sorrimos / pro primeiro fio branco? / E se amássemos o tempo?". O que, com sabedoria e vigor, Felipe fez até o fim.

No dia seguinte os encontrei a caminho de uma passeata. Como sempre, Felipe produzia seu próprio cartaz de protesto, que virava assunto à parte nas manifestações.

Nosso último encontro foi em setembro passado. Almoçamos no restaurante La Docena, na mesma Cidade do México, de onde se mudavam para uma casa distante ainda em reforma cujas fotos ficamos admirando. Ao nos despedirmos, Felipe apontou para mim: "Lourdes, sabe, às vezes eu esqueço, mas toda vez que encontro esse cara, eu vejo que eu gosto dele pra cacete". Eu também de você, Felipe.

*

Aclamado em seu país, o multiartista Felipe Ehrenberg participou em Londres do movimento Fluxus (de que fizeram parte John Cage, Joseph Behuys, Yoko Ono), fez mais de 70 exposições e diversos livros, ganhou prêmios internacionais e em São Paulo teve uma grande mostra de sua obra na Estação Pinacoteca em 2010. Seus trabalhos são representados pela galeria Baró, que prepara uma retrospectiva para setembro.


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