Folha de S. Paulo


Exilado em Bruxelas serviu comida comum, mas me pareceu iguaria

Valentina Fraiz

Era o final dos anos 1970 do século passado. A imagem da Grand Place de Bruxelas era impactante, uma arquitetura antiga e sólida que remetia à história da Europa.

O edifício da Câmara Municipal, do século 15, era anterior à chegada oficial dos europeus à América. Mas também, na praça e nas redondezas, atraíam minha atenção lugares não tão antigos (mesmo com pinta de centenários) onde os belgas sentavam para beber a sua cerveja.

Cervejarias, brasseries, lugares onde mal havia comida (não é a cerveja o pão líquido?), com placas dizendo que Freud (ou Lenin) sentou ali, ostentavam um paraíso que eu não imaginava possível.

Brasileiro, estava habituado com aquela lavagem industrial, sem gosto e sem alma, que todas as marcas nos empurravam goela abaixo.

Imagine meu susto ao deparar com um cardápio com mais de cem tipos e marcas de cervejas; e minha surpresa ao constatar que, a cada pedido diferente, chegava também um copo diferente, onde cabia o conteúdo da garrafa, com o devido colarinho.

Gueuze, lambic, trapista, infinitas cervejas de abadias e até as prosaicas pilsen eram tão cheias de sabores e aromas, além da consistência de encher a boca, que pareciam ser uma refeição completa.

Era meu primeiro contato com a Bélgica e com aquela praça que eu só conhecia dos livros de história. E com a piada pouco antes ouvida na França: por que a Grand Place é cheia de batata frita (paixão belga) pelo chão? Porque quando o sino começa a tocar as horas, todo mundo checa o relógio de pulso -a piada requer apoio de mímica, a mão segurando um imaginário saco de batatas fritas, que voam para o chão quando o português, digo, o belga, gira o pulso para ver a hora.

Mas não estávamos naquele lugar para beber. Tínhamos, meu companheiro e eu, pegado o trem em Paris para encontrar, sorrateiramente, um brasileiro que estava exilado. José Ibrahim era um jovem metalúrgico que liderou uma greve na cidade industrial de Osasco, na grande São Paulo, em 1968.

Em represália, fora afastado da presidência do sindicato, demitido da empresa e, aderindo à militância política, preso e torturado dias a fio pela ditadura militar. Até que, em troca da liberdade do embaixador americano que havia sido sequestrado, foi enviado ao exílio com outros 14 presos políticos.

Ele só voltaria ao Brasil com a Lei da Anistia, de 1979 -que, na época da minha viagem, se aproximava. Militando contra a ditadura, eu e meus companheiros tínhamos interesse em dialogar com este líder da primeira greve operária pós-64, que também procurava manter vínculos com seu país.

Nós o visitamos em seu apartamento modesto, mas bem ajeitado, e me lembro de sua hospitalidade mais brasileira que europeia. Mesmo não nos conhecendo, a não ser por mensagens clandestinas, ele nos chamou para almoçar.

Conversamos muito tempo sobre a situação política no Brasil e na Europa também. Enquanto falávamos, ele preparava a comida, nos moldes do país em que estava. No lugar de um bife comum com arroz e uma saladinha de tomate, a carne na frigideira era de vitelo. Como acompanhamento, cogumelos refogados na manteiga. Além de cerveja.

Vitelo de verdade, tão raro no Brasil, é comum na Europa. Naquele outono, champignons de vários tipos eram vendidos por bom preço até em bancas de rua.

Nada de especial para os locais; mas, aos meus olhos neófitos, pareceu um menu altamente sofisticado, ainda que feito com simplicidade no meio de uma conversa branda, por mais graves que fossem seus temas.

*

Ibrahim morreu em 2013, aos 66 anos. Na volta ao Brasil, participou da fundação do PT, depois foi para o PDT, migrou por diferentes centrais sindicais e nunca mais teve a importância que, na explosão de sua greve de 1968, ocupou no país.

Assim como eu, tendo voltado muito depois e conhecido uma Bélgica linda, histórica e gourmet, nunca mais tive a oportunidade de reviver a sensação daquele papo afável, abastecido por champignons da estação e cerveja de verdade.


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