Folha de S. Paulo


Perseguida em vários países, fumaça dos charutos faz falta aos hotéis

Embora já tenha lido a descrição, não me lembro de enxergar uma atmosfera azulada em salas entupidas de fumaça de cigarro. Talvez seja uma visão sinestésica de romancistas e fotógrafos; a mim, os velhos cafés franceses tinham mais uma cerração plúmbea de inverno do que reflexos de um céu de outono.

Eram dois tipos de atmosfera: a do cigarro e a dos charutos, com seus respectivos ambientes e frequentadores, fosse o bar Ritz em São Paulo ou o bar do Ritz em Paris.

Parei de fumar cigarros instantaneamente no certo dia em que senti um gosto ruim: era nicotina amarela e pastosa, prematuramente agarrada a um dente a caminho do pulmão. Fechei os olhos e pensei: onde estava o maço de cigarros? Ou o isqueiro que usei para acendê-lo? Não tinha ideia, tão automático fora o gesto –aquela não era bem minha ideia de prazer.

Adotei então o charuto, que me fazia fumar menos e era objeto de cuidadosa escolha pelo tato, pela aparência e pelos aromas. O oposto do que via naqueles nublados cafés parisienses. Como apreciar vinhos, omeletes e croque-monsieurs com atmosfera tão impregnada? E como fumar com a comida, as garfadas intercaladas por tragadas no cigarro permanentemente aceso?

Já os charuteiros pareciam enfrentar mais dignamente o vício. Enquanto tabagistas de cigarro ignoravam os não fumantes ao lado, os charuteiros aguardavam o local esvaziar antes de impregná-lo com seus prazeres. Pessoas deselegantes atiravam bitucas de cigarro ao chão, enquanto charuteiros viviam à cata de onde colocar os seus dejetos fumegantes.

São de toda forma lembranças que tendem a cair no esquecimento. Sempre me acomodei, e com entusiasmo, às leis que pregavam uma saudável separação entre fumantes e não fumantes nos espaços públicos; mas deploro que o Estado tenha o poder de impedir que uma pessoa inale o que quiser.

Não sinto saudades dos irrespiráveis cafés franceses ou madrilenhos. Mas sinto falta de sentir, em espaços amplos como os dos antigos hotéis, aquele aroma vegetal dos charutos, que me evoca a natureza e ao mesmo tempo as criações dos homens: o couro, a madeira, o chocolate, o café...

Ok, fazer reunião em Cuba em salas pequenas onde todos fumam e nenhuma janela é aberta devido ao ar-condicionado torna-se uma experiência literalmente sufocante.

Mas tantas noites, depois do almoço ou do jantar, no antigo Fasano da rua Haddock Lobo (ou antes até, no Ca'd'Oro), tiveram bons charutos como combustível de longas conversas que dá pena ver hoje o lobby do hotel Fasano, com aquelas poltronas de couro que praticamente imploram o tempero do bom e banido tabaco cubano.

Parece um insulto ao quase centenário The Dorchester, em Londres, que já não haja volutas de fumaça dos maravilhosos charutos vendidos na St. James's Street. O Plaza Athenée de Paris conseguiu uma solução menos dramática: transformou o estreito jardim fronteiriço num bar ao ar livre, livre assim dos rigores da lei.

Já o Peninsula parisiense, para não deixar órfãos os charuteiros, criou uma sala especial muito elegante e confortável, a não ser pelo fato de estar hermeticamente apartada do mundo –lá dentro, se você quiser um conhaque do bar ao lado, tem que pedi-lo por telefone, e ele será entregue através de uma portinhola giratória, daquelas de motel ou de claustro.

No Brasil, nos Estados Unidos, em toda Europa, o mundo mudou para melhor sem a liberalidade absoluta em relação aos fumantes, antes tão ousados e impunes.

Mas quando aluguei uma casa em um condomínio no Colorado (EUA) e, ao fumar meu charuto no meu próprio lar temporário, sem querer disparei um alarme que me colocava como um criminoso, me pareceu que o bom senso está se dissipando junto aos anéis de fumaça que inocentemente exalara.


Endereço da página: