Folha de S. Paulo


É para comer junto ou separado?

Valentina Fraiz

Durante minha infância e adolescência, aprendi a comer tudo junto. As pessoas, e as comidas. Comer junto, como um ato social. E comer tudo ao mesmo tempo, no mesmo prato, como um hábito cultural.

Arroz e feijão não são, aqui, como em Cuba (moros y cristianos) e em outras partes do Caribe, onde são cozidos juntos e já vêm ajeitados de nascença. Aqui fazemos separado, mas é imperativo que, no prato, se mesclem numa miscigenação brasileiríssima.

E dá-lhe farinha, carnes, legumes, saladas. Só a sobremesa fica para depois –embora na minha família, que vem metade do Norte, metade do Nordeste, haja quem não dispense a banana no prato.

Foi só na juventude, numa primeira viagem à Europa, que me defrontei com o ritual de separação dos pertences. E não em lugares necessariamente chiques. Não se tratava de elegância: apenas era assim.

No mais barato bistrozinho francês ou na bela (mas para pobres) brasserie Chartier, fazia-se o mesmo que no já decadente mas ainda luxuoso Maxim's: mesmo no menu do dia, viria primeiro a entrada (saladinha, um ovo com maionese); em seguida, a carne com algum legume ou pão (filé de diafragma, que parece a fraldinha, com batata frita e molho de mostarda, um frango assado com batata cozida); e depois a sobremesa (pudim de leite ajudava a lembrar da pátria distante).

Nos lugares mais distintos poderia haver mais pratos (hors-d'oeuvres para atiçar o paladar, entrada fria e depois quente, um avant-dessert como couvert da sobremesa...) mas a ideia permanecia a mesma.

Na Itália achei parecido, embora diferente. Na mais simples das osterias, as coisas vinham também em ondas, impondo um comer mais compassado, em ritmo sábio. Primeiro massa ou risoto; depois a carne ou peixe com legumes; e salada no final, precedendo a sobremesa.

A comida, portanto, vinha separada. Já quanto às pessoas, o ritual era como no Brasil: come-se junto, com calma e em comunhão.

Na minha primeira vez nos Estados Unidos, a impressão foi bem outra. Comer junto, compartilhar não apenas a comida, mas o momento, não era tão evidente. Caminhando pelas ruas no horário do almoço, via muita gente comendo de pé, andando, sozinho. As delicatessens sequer tinham mesa ou cadeira nem mesmo balcão e banquetas.

Comer parecia um estorvo a ser rapidamente equacionado; jantar em família era cada um com sua caixinha de delivery em frente à TV. No almoço, a ideia de sentar, servir-se em pratos e talheres, conversar, tomar um vinho, seria uma pavorosa e improdutiva perda de tempo; desse jeito, ficariam duas horas almoçando, como os malucos dos franceses, italianos ou espanhóis.

Ou portugueses, de quem nós, brasileiros, herdamos este tique mediterrâneo de comer juntos, devagar. Se americanos, mesmo os ricos, não se importam de almoçar um sanduíche numa caixa de papelão, sentados numa escadaria da rua, brasileiros, mesmo os pobres, preferem sentar direito para comer –ainda que num balcão simples e esgarçado, com talheres finíssimos (na espessura), somente arroz, feijão, ovo e uma talagada de cachaça, sorvida ao lado dos companheiros da fábrica ou da obra. Nisso há muito mais dignidade.

Esses hábitos mediterrâneos (não somente do lado europeu, mas também nos países árabes se come junto e com calma) são uma bênção da nossa história. Há no mundo quem coma as comidas separadas; há quem as coloque todas juntas na mesa para ir "ciscando" ao mesmo tempo (libaneses, chineses, muitos asiáticos); e há quem coloque no mesmo prato arroz, feijão, salada e o que vier. Nós. Mas sobretudo nós comemos juntos: isso nos distingue mais do que todo o resto.


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