Folha de S. Paulo


Areia branca e fofa é boa para o banhista, mas atrapalha o sorveteiro

Danilo Verpa/Folhapress

Enquanto na praia todo mundo olha para o mar, alguém está olhando em sentido contrário. Para a areia. Os ambulantes estão mais interessados no vai e vem das pessoas do que no das ondas. Dali vem sua sobrevivência.

Há muita coisa à venda –cangas de tecidos de quinta e preços de primeira, bonés que poderão salvar superfícies calvas se já não forem comprados tarde demais, óculos de aros bem imitados segurando lentes que serão passaporte seguro para a cegueira, revistas que escrevem mentiras desde a época da pré-verdade.

Ganham em oferta os itens alimentícios –de sanduíches naturais (equilibrando cenouras, berinjelas e maionese de soja com iguais proporções de agrotóxicos) a espetinhos de camarão congelado trazido de São Paulo.

Nesse departamento, talvez o item mais ecumênico seja o sorvete. Não depende da fome do freguês: basta estar calor (o que é um pressuposto, embora não infalível, da praia), que tem saída o tempo todo.

Tampouco depende da idade ou gênero de quem compra: seu apelo é irresistível para qualquer tipo de pessoa, tendo ainda uma vantagem: seduz principalmente as crianças, elo fraco da cadeia de consumo.

Por trás de seu sorriso sedutor de vendedor, o sorveteiro é inclemente em seus insuspeitos julgamentos. "São umas pestes", rumina ele mirando a petizada. "Se apinham no meu carrinho procurando o que querem, se é que sabem o que querem. Chegam, pegam, nem dinheiro trazem, e depois eu tenho que adivinhar e cobrar dos pais. Mas são meu ganha-pão, tenho que tolerar."

"E essa areia maldita? Tenho que escutar o tempo todo como ela é branquinha e fofa como em nenhum lugar do mundo. É o que escuto repetirem os bacanas que já foram pro Caribe, pra Bahamas –que achei que era aquele puteiro em São Paulo–, e até pra Bahia, de onde eu vim e nunca imaginei que esses ricos gostariam de estar."

"Areia branca o cacete, daria meu reino –ainda que seja apenas meu casebre, mas teria que ser com sogra junto, é claro– por uma areia dura como eu, preta como eu e lisinha como asfalto. Mas que trocava por essa desgraça de areia macia trocava mesmo. Assim eu suava menos de tanto afundar e ter que dragar de volta cada passada; e minhas costas, sem tanto dessa ondulação remexendo o corpo inteiro, me dariam menos sofrimento. Areia fofa é bom pra madame que fica deitada em cangas que reluzem ao sol e custam mais que meu ganho mensal; pra ficar caminhando e empurrando peso debaixo do sol é que esse piso não serve."



Esse monólogo interior do sorveteiro não era bem do sorveteiro, era criado na mente do indolente banhista que pouco se banhava, mas estava debaixo da barraca, óculos polarizados no nariz, cerveja em riste, livro aberto sobre as pernas cor de Ferrari, e olhos semicerrados mirando o vulto do vendedor em movimento deixando rastros contra a paisagem esmaecida do pôr do sol.

Seu coração entorpecido pelo calor, pela bebida, pela vida, ensaiava compaixão por aqueles trabalhadores obstinados, resquícios de escravos e de mulas de carga, que derretiam por um sorvete vendido aos burguesinhos aboletados na areia.

Como poderia ele saber que aquele sorveteiro magro, preto e esperto, devolvia seu olhar piedoso ao mesmo tempo em que pensava ali com seus chicabons: "Te cuida, malandro, hoje estou aqui, mas não será para sempre. Afofa aí sua bunda na areia mole enquanto pode... Vai mais um sorvetinho pras crianças? Se apressa, compra logo dois, que nossa sorte muda, e podem ser os últimos -os seus, e os meus".


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