Folha de S. Paulo


Prefiro as janelas dos hotéis abertas

O barulho ensurdecedor de motores e brocas gigantes no prédio aqui ao lado de onde escrevo, onde estão escavando um poço artesiano, diz a vizinhança, me remete ao problema que enfrentamos frequentemente em viagens a grandes cidades.

A janela é o ente que costuma concentrar minhas dúvidas e indecisões quanto ao problema do ruído externo.

A dúvida começa com minha restrição ao ar-condicionado e ao desejo (talvez mais mental e insano do que saudável) de respirar o ar que vem de fora, inclusive na hora de dormir. O que na praia ou na montanha é totalmente compreensível, claro, mas que numa grande cidade poluída pode parecer insano.

Não preciso falar dos danos que a poluição do ar provoca em todos que a inalam -embora não devam ser muito maiores do que os que produzimos por outras substâncias que ingerimos, via nasal, oral, venal (o termo é ótimo!), por todas as vias, a depender da preferência.

Mas OK, de fato, me parece, seria melhor evitar as janelas abertas, já que os poluentes do ar não trazem nenhum efeito colateral prazeroso, o que os outros poluentes pelo menos contam em seu regaço.

Já a poluição sonora pode ter efeitos que nem sempre são igualmente proclamados. Mas, à medida que nos habituamos ao som ao redor, eles vão se instalando sem que percebamos, parecendo ser parte da paisagem, mas provocando estresse, insônia, dificuldades no aprendizado, taquicardia, pressão alta...

Valentina Fraiz

Nada que a gente não conheça, mas engraçado, achei que esses sintomas fossem efeitos apenas da idade -eu pelo menos já os sinto desde que comecei a envelhecer. Lá pelos 30 anos. Será então que era culpa do barulho?

Talvez seja. Mas, ainda assim, tenho profunda irritação com alguns hotéis onde as janelas são completamente blindadas. Nem mesmo uma fresta suficiente para deixar entrar o clima local, ainda que, aceito, estreita o bastante para bloquear corpos suicidas.

A sensação de estar entregue inapelavelmente ao ar-condicionado incomoda. Mesmo porque nem todos os hotéis têm sistemas silenciosos e equitativos -muitos parecem motores de avião, com rajadas localizadas saindo de suas turbinas.

Já os hotéis onde as janelas podem ser abertas, e com isso minimizam minha claustrofobia existencial, trazem a punição do ruído. Isso pode acontecer no quadragésimo andar de um arranha-céu no centro ruidoso de Nova York ou no segundo andar de um pacato hotel na parte velha de Évora (se a rua em frente tiver trânsito de carros).

Janelas antirruído dão então o seu motivo de existir. Já passei os olhos por estudos que falam das sequelas psicológicas do excesso de barulho: o que vale para um riff com bordão do Metallica, que no entanto não é permanente, e também para a algazarra das cidades com poluição sonora, que podem ser incessantes e se introduzir sorrateiramente no seu cérebro como um verme.

Ainda assim... Um pouco de barulho não mata. Quero ter o direito de ter acesso a ele, naquele coquetel de poluições do ar e do som, ainda que por momentos. Quero ao menos abrir um pouco a janela, deixar que a cidade impregne momentaneamente o quarto, ainda que mais tarde seja obrigado a fechá-la e pressionar o botão do ar-condicionado (OK, você venceu; mas só por algumas horas).

Quero deixar a janela do hotel aberta quando saio para trabalhar ou passear, para, só na volta, se necessário, voltar ao isolamento redentor do turista assustado com o clima e o barulho do mundo lá fora.


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