Folha de S. Paulo


Calabouço à beira-mar

Admito: não era uma cela das mais convencionais ou das piores. O cárcere era limitado, de um lado, por uma singela casa de madeira; atrás, pela paisagem rústica de uma cidade de interior.

Um perfumado cajueiro delimitava outra das laterais; e a frente (mas poderíamos chamar de fundos) começava com uma areia não tão fofa. Para uma cela, não parecia ruim, especialmente sabendo que logo adiante batiam ondas de um mar que se perdia no horizonte.

A separar da praia, somente um portão na cerca frágil e simbólica. Não eram necessárias gazuas, limas ou grampos de mulher para abrir ferrolhos que não existiam.

Era o final dos anos 1970. Os três prisioneiros -melhor descrevê-los como desterrados- eram líderes de um movimento estudantil contra a ditadura militar que crescia em importância quanto mais começava a claudicar o governo. Mas o ditador e seu exército (inclusive os esbirros civis) ainda estavam lá.

E tiveram a ideia de aprisionar também aqueles três jovens cabeludos. Às vésperas das férias da universidade (quando então os protestos eram mais difíceis de organizar) começou uma vigilância estreita contra os garotos, prenunciando o bote.

Então sorrateiramente fugiram. Dispostos a, se necessário, sair do radar até que as aulas e o movimento estudantil voltassem em pleno vigor. E o discreto refúgio encontrado ficava na periferia de Florianópolis. Na casa de um casal de companheiros de luta, na praia de Cacupé.

Divulgação/Prefeitura de Florianópolis
Praia de Cacupé, em Florianópolis (SC)
Praia de Cacupé, em Florianópolis (SC)

Era uma casa deliciosa, mas pequena; por isso eles montaram uma barraca no jardim, sombreada pelo cajueiro e envolta pela brisa do mar.

Começou ali uma temporada de várias semanas que lhes mostrou como pode ser traiçoeira -a depender do momento- a convivência com aquilo que o mundo do turismo descreve como uma "praia paradisíaca", num local "isolado e tranquilo".

Havia regras estritas de discrição. Nem pensar em circular na cidade: sendo líderes conhecidos nacionalmente, não seria impossível que alguém do movimento estudantil local (inclusive um possível policial infiltrado) os reconhecesse.

E nada de comunicações óbvias, como telefonemas para a família (já disse que eram também irmãos?), o que significava deixar mãe, irmãs e namoradas no escuro, sem notícias.

Sendo assim, a estadia na paradisíaca Cacupé foi dia a dia se tornando um tormento. E não havia internet, celular, TV a cabo -o que aumentava a angústia do isolamento.

Tentavam ler, mas na pressa da fuga não haviam levado livros. Ouviam música, os LPs da coleção local. Conversavam o dia inteiro. Mas que assunto resta a três irmãos que viviam juntos, inclusive na militância?

Repito que o desterro não era dos mais cruéis. Nada que pudesse se comparar ao gelo dos campos hitleristas ou aos gulags stalinistas; tampouco ao calor das celas castristas ou às imperialistas de Guantánamo.
Mas espreguiçar-se na areia... saltitar no mar... jura que todo dia, o dia inteiro, é bom? Quem aguenta?

A dinâmica do exílio os foi impelindo a outras ocupações. Um cuidava com desvelo da limpeza da casa dos anfitriões. Outro os presenteou com peças de xadrez esculpidas em pedaços de cabo de vassoura. Outro atracou-se ao único livro de cozinha ao alcance da mão, uma velha edição do "Dona Benta", com receitas que executava com o primor possível ou desenvolvia em variações como o memorável (apenas pra ele, claro) "purê à Cacupé" (mera versão do hachis Parmentier, cujo nome francês nenhum deles -dona Benta incluída- conhecia então).

Mas esta é uma coluna de "Turismo". E decidi sempre forjar alguma ligação dos meus delírios com o tema oficial do caderno. Que nesse caso vem a ser: sempre desconfie de descrições de destinos paradisíacos, pois mesmo que pareçam ser, tudo sempre depende da sua expectativa.

O paraíso pode ser o seu inferno, e enlouquecer. (Mas, nesse caso, pelo menos, atracar-me insanamente com dona Benta -sim, era eu-, terminou aguçando sabores de uma futura profissão.)


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