Folha de S. Paulo


A 'febre espanhola' me fez ficar entre Scarlett Johansson e Penélope Cruz

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Penélope Cruz, em
Penélope Cruz, em "Vicky Cristina Barcelona"

A região do rio Duero, na Espanha, conhecida por seus vinhos, tem também uma natureza plácida marcada pela história. É um pedacinho encantador, embora registrado numa memória borrada pela febre e por uma alucinação que quero que se repita.

Em Sardón de Duero, uns 200 quilômetros ao norte de Madri, a leste de Valladolid, fica o hotel Abadía Retuerta LeDomaine. Uma antiga abadia do século 12, no meio de vinhedos e impecavelmente restaurada: das celas monásticas que viraram quartos ao refeitório de abóbadas góticas, hoje restaurante. Estava ali para um simpósio com jornalistas de gastronomia do mundo (apenas eu da América do Sul), chegando de outro evento em Nova York.

Tudo isso eu conto com uma nuvem de incerteza, porque já em Nova York caí num estado febril que, dado o frio terrível, creditei a uma gripe. E assim atravessei o Atlântico.

Chegando ao hotel, mal recordo o jantar preparado pela equipe do chef Andoni Aduriz, do famoso Mugaritz (do País Basco). Deitado, não conseguia mais levantar. No dia seguinte pedi ajuda. Penalizada –ou temendo ver um hóspede somar-se aos incontáveis finados dos últimos nove séculos–, a equipe do hotel me levou ao pronto-socorro mais próximo. Foi quando chegou ao êxtase o delírio do qual não pretendo me livrar.

Era o último sábado de março de 2014 quando cheguei ao hospital de "atención primaria". Era estranho: um pronto-socorro público meticulosamente asseado e vazio: ninguém fica doente na Espanha?

O delírio começou a fermentar quando uma linda morena de jaleco me chamou. Entrei humildemente, admirando-a, quando avistei na sala uma médica loira, igualmente jovem e linda. Começou o interrogatório, e eu contando tudo, ansioso para que as perguntas (sobre sintomas físicos) começassem a perscrutar minha alma: eu estava pronto a confessar tudo, a começar por meu encanto por aquelas beldades saídas da profundeza do meu delírio febril.

O que era aquilo?, me perguntava, enquanto enfileirava os nomes de fantasia dos meus remédios, que mais as intrigavam que esclareciam. O que era aquilo?, me perguntava, enquanto me imaginava um Javier Bardem dividido entre Penélope Cruz e Scarlett Johansson –eu, que estou muito mais para Woody Allen (e para o além) que para Bardem.

A dúvida mudou de gênero cinematográfico quando a médica me mandou deitar. Como recusar? E fomos para a cama, digo, maca, enquanto minha mente fragilizada pela febre pintava outro cenário: o dos filmes pornôs temáticos. Ao me inclinar para trás, a morena delicadamente apoiava minha nuca, enquanto a loira afagava –digo, apalpava profissionalmente– meu ventre. Loira e morena, jaleco médico, óculos escorregando para a ponta do nariz: como ninguém fez um filme pornô com essa fantasia?

A verdade é que já fizeram. E a verdade é que, ao me apalpar, o suspiro da loira foi: "Uhum... gases". E ao iluminar meus orifícios (só os superiores), no lugar de "que lindos olhos", ela disse "que enorme tampão de cera no ouvido".

O diagnóstico não foi um coração derretido, mas um ouvido infeccionado. A proposta não foi de um jantar a três na abadia, mas "paracetamol, amoxicilina e hidratação". O regalo, pousado docemente em minhas mãos, não foi um anel, mas antibióticos, cortesia do Estado.

Eu ardia em febre. Tão desamparado que, na ficha, no campo de endereço, elas escreveram "desplazado" –viajante em trânsito, mas poderia ser um dramático "desalojado" ou, numa semântica existencial, "deslocado", como me sentia.

O delírio febril pode ter me iludido quanto à aparência de minhas salvadoras? Mas, se Woody Allen pode colocar Javier Bardem entre Penélope e Scarlett, por que não posso sonhar que estive com as duas na cama –digo, maca?


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