Folha de S. Paulo


Certos restaurantes marcam mais pelo ambiente do que pela comida

Valentina Fraiz

E quando o lugar do restaurante rouba a cena, e a comida fica em segundo plano? Se você for um crítico gastronômico, como fazer para separar a emoção do local da emoção do paladar? Bem, eu aprendi a fazer isso: já vou adiantando que é chato, é uma daquelas mazelas que toda profissão tem, acredito. Você tem que se distanciar do momento, da companhia, do lugar e focar o que dizem suas papilas.

Sim, é chato, mas, para quem exerce a profissão há tempos, não é tão terrível quanto para alguém que não trabalha com isso e um belo dia tivesse que eclipsar tudo em volta. Quando a gente é do ramo, já faz isso meio automaticamente, consegue forjar uns lapsos de ausência e registrar na memória (ou na caderneta –seja de papel ou eletrônica) a essência do que estamos comendo.

Mas, se para um profissional é apenas força do hábito, nenhuma tragédia, não deixa de ser chato, sim. Acho que a verdadeira arte está em conseguir fazer a necessária avaliação técnica da comida, mas não ser insensível aos demais encantos que um lugar (ou um momento, ou uma pessoa) possam transmitir.

Quando, em Istambul, fui comer no Asitane, vi que foi o lugar onde tive mais informação interessante sobre a gastronomia local. O restaurante é especializado em comida otomana, com receitas dos sultões, e, tendo almoçado com o proprietário, que falava um inglês bem melhor que o meu (não é difícil), fiquei sorvendo raras aulas de história e de gastronomia.

Mas na mesma Istambul foi mais inesquecível um almoço no restaurante Zinhan Kebap House, no topo de um edifício que abria uma vista espetacular para o porto. Lá de cima, comendo pratos até que bem feitinhos, o mais sensacional era, do terraço, avistar o estreito de Bósforo, tendo na mente que alguns metros adiante acaba a Europa e que do outro lado do estreito, que continua sendo Istambul, era também o começo da Ásia.

A vista do porto (e da estreita fronteira entre continentes) também embalou outra refeição que tive ali, embora mais informal e rápida: um sanduíche de filé de peixe servido numa das banquinhas que, na beira do porto, alimentavam os passantes.

Não era grande coisa, mas tampouco era terrível –no mínimo pela qualidade do peixe fresco, trazido pelos pescadores que ali atracavam, o que já cria uma aura de irresistível romantismo gastronômico. Portanto, não era só a comida: era também a brisa salina, a vista da fronteira aquática, as gaivotas circulando...

Também à beira-mar tive outra experiência, no ano passado, num delicioso almoço nos arredores da cidade do Porto, em Matosinhos, no restaurante Casa de Chá da Boa Nova. Fui levado por Dirk Niepoort (proprietário da vinícola com seu sobrenome), depois de um curioso passeio por lojas de apetrechos de cozinha (ah, e uma de brinquedos também).

A identidade do meu anfitrião já era por si só garantia de bons vinhos no almoço. E o nome do chef, Rui Paula, que dirige outros restaurantes em Portugal (e um no Recife), era promessa de que má a comida não seria.

Mas o que mais ficou na minha memória –além do bom papo do Dirk– foi o lugar: à beira-mar, num pequeno trecho de rochedos onde pousa a construção e as ondas se esborracham em lindos rendados brancos. É pouco? Sim, é pouco, pois acontece que o restaurante foi projetado, no final dos anos 1950, pelo grande arquiteto português Siza Vieira.

E não é tudo, porque, além do projeto arquitetônico amplo, funcional, generoso, rendendo homenagem à natureza em volta, o mobiliário também tinha a assinatura do autor. O simples gesto de ir ao banheiro era um passeio das retinas por uma obra de arte que nos envolvia.

A comida era boa, moderna, detalhista, bem cuidada, com maravilhosos produtos do mar da região. E mesmo não sendo excepcional, o almoço foi inesquecível.


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