Folha de S. Paulo


Memória pode trair as lembranças daquela antiga viagem

Kiko Ferrite/Folhapress
Praia de Trancoso, que era um reduto pouco explorado pelo turismo no passado
Praia de Trancoso, que era um reduto pouco explorado pelo turismo no passado

As ruas calmas, a arquitetura ordenada, as pessoas gentis, o bar com gente alegre, a banca de jornal com o colorido vibrante das capas de revista... de repente, as imagens tão vivas, que por tanto tempo alimentaram o desejo do retorno, desabam pesadamente em sua crua realidade: a rua é barulhenta, as pessoas atropelam umas às outras, o bar é sujo e a banca nem existe mais (se é que algum dia existiu).

Mudou aquele cantinho da cidade que tanto seduzira? Ou o que mudou foi você? Hoje não é mais preciso recorrer à neurociência nem às colunas afiadas do Hélio Schwartsman aqui na Folha (das quais prazerosamente discordo com frequência) para saber que a memória está longe de ser um registro fiel dos acontecimentos.

Na verdade, ela está mais para uma ficção baseada em fatos reais, embora às vezes os fatos nem tenham ocorrido –muitas vezes, embeleza nossas vivências, guardando doces recordações, mas de coisas nem sempre vividas.

Quando viajamos a passeio, não é isso o que buscamos? Coisas novas que se tornem um registro que, adiante, vamos sentir que enriqueceu nossas vidas? E das quais nos vamos lembrar com saudade? A questão é, quando a saudade bate, tentar repetir a experiência.

Existe aquela viagem em busca de novos lugares, novas pessoas e novas experiências. Nela há sempre o risco da decepção inerente ao desconhecido. Em compensação, é uma aventura que nos poupa da decepção da memória e da experiência de voltar para algo que só existia na nossa lembrança, mas que não corresponde à realidade.

Outro viajante prefere ser fiel aos poucos lugares de que gosta. E, voltando com frequência à mesma praia ou à mesma cidade, não dá tempo para que manipule as lembranças. Aquela praia é linda mesmo, tem um pôr do sol maravilhoso. Mas também chove bastante e, no fim da tarde, no lugar do espetáculo alaranjado dos últimos raios do dia, chegam enxames de mosquitos.

Quanto mais o tempo nos distancia da realidade do passado, maior pode ser o choque depois. Porque os lugares mudam, a gente muda, e, mesmo que nada mude, nossa memória pode ter preparado uma verdadeira armadilha.

Costumava ir a Trancoso nos anos 1980, num espírito jovem e aventureiro herdado da cultura hippie. Era preciso chegar a Porto Seguro de avião ou ônibus, seguir pra Arraial d'Ajuda de barco e, dali, até Trancoso, a pé. Eram duas horas de caminhada (que poderiam ser muito mais, se a maré enchesse o rio que cortava o caminho) e "sex on the beach" deixava de ser apenas o nome de um coquetel (tendo apenas o Sol por testemunha).

A pacata vila se resumia à praça (o quadrado), onde os locais dominavam mansamente a paisagem que, adiante, passada a igrejinha branca, se despejava num imenso mar azul de apertar o peito.

Passada mais de uma década, voltei certa vez. De Ajuda até lá havia uma estrada e um ônibus. Ele não chegava ao paraíso, mas a uma área pobre e triste de uma periferia que eu desconhecia (novo lar, suponho, da população que agora fazia faxina para os ricos).

Caminhando, cheguei ao quadrado, que parecia mais um cartão postal plastificado que aquela idílica imagem da convivência simples do homem com a natureza. Descendo à praia, já quase não via areia, de tantos quiosques caros. Pudicamente afastada, uma área ainda permitia que as moças praticassem topless (mas sexo, mesmo ali, obviamente nem pensar).

Horrorizado, nunca mais voltei a Trancoso, que tanta gente continua jurando ser um dos lugares mais belos do planeta (bem, especialmente quando usufruído nas piscinas de suas mansões).

Quanto de todo este relato é verdade? Quão verdadeiramente idílicas são minhas lembranças juvenis? Quem me garante que talvez eu não tenha penado com o calor insuportável todas as noites e não tenha brochado diante da escancarada beleza –humana e natural– sob o sol quente?

De toda forma, é certo que Trancoso mudou. E eu também. Para quem nunca deixou de ir para lá, as mudanças podem ter se processado com menos traumas do que no choque do retorno. Depois de tanto tempo, talvez seja melhor guardar o que vimos na memória (mesmo mentindo). E, na hora de viajar, seguir sempre adiante para novos destinos. Até que se transformem também em doces ilusões.


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