Folha de S. Paulo


Urubus da Vila Nova Conceição miram a carniça da miséria humana

Valentina Fraiz
coluna josimar melo 1 set turismo

Certa vez, sentado na sala de casa, preguiçosamente buscando perder meu tempo, tentei adentrar um livro que requer concentração. Enorme, tinha como cenário a aristocracia francesa do século 19, famílias riquíssimas vivendo fausto e luxo. Mas a concentração estava difícil: pela janela do apartamento disputavam minha atenção os círculos negros que uma família de urubus riscava no céu.

Não moro em nenhuma cidade muito pobre dos rincões do Brasil nem perto de nenhum lixão na periferia das cidades ricas: da janela avisto um dos bairros mais ricos da cidade mais rica do país. Mas sem a mesma espetacular vista zenital de meus negros vizinhos alados em suas volutas perfeitas.

Em que outra cidade tão rica do mundo terei visto a mesma convivência entre os urubus –que se alimentam de carniça, produto que teoricamente não abunda nas áreas urbanas mais ricas– e a riqueza?

Talvez haja, mas não lembro que me tenham chamado tanto a atenção. Já na minha própria casa, tomei como hábito acompanhar esses inesperados vizinhos, seu elegante movimento alado; com o tempo, observei onde moravam (nos altos de um dos incontáveis prédios horríveis e cafonas que entopem essa ilha de riqueza) e deduzi que sua presença deve ser motivada pela existência de um parque bem próximo, onde certamente pequenos animais deixam suas carcaças para usufruto do elo seguinte da cadeia alimentar.

Concluí também que o alto dos prédios serve de simulacro dos penhascos onde, na natureza selvagem, essas aves de rapina se sentiriam em casa.

Há algo de democrático na ideia de que o parque, que recebe principalmente uma elite financeira, mas está aberto a todos, também seja ambiente tanto para os ricos cães de estimação soterrados em pedigree quanto para os negros urubus, igualmente filhos de Deus.

Em muitas tardes de leitura indolente no Jardim de Luxemburgo, em Paris, sempre vi passar gente de todas as classes e cores, mas nunca os intrusos alados. Nas tranquilas tardes nas escondidas Arènes de Lutèce, na rive gauche parisiense, onde espairecia às vezes durante certa estadia de um mês na cidade, observava sempre o céu de outono –mas sem abutres.

Os democráticos parques franceses não seriam atraentes o bastante para eles? Seriam os clássicos edifícios parisienses baixos demais para os hábitos das aves de rapina? E no Central Park, por que dos gigantescos despenhadeiros de concreto ou de vidro nunca vi planarem gulosas aves? Sem falar da Índia, onde os urubus, parte do rito funerário dos parsis, também escasseiam.

Meu bairro é plano, gostoso de caminhar, tem o parque colado, pracinha cheia de babás impecavelmente vestidas e crianças mimadas, um primor urbano, raro cartão-postal de São Paulo digno de belas cidades do mundo. Mas, para apreciar a paisagem, é preciso um filtro que apague das imagens tantos significados a elas justapostos como incômodas filigranas.

Caso contrário, começamos a perceber (e nos incomoda) que as ruas tranquilas são tomadas menos por moradores que por vigilantes seguranças particulares. Que no parquinho há cristalina homogeneidade de dois mundos, o dos muito ricos (as crianças) e o dos pobres (babás higienicamente uniformizadas). Que não há botecos (ou quase não) em que populares tomam cachaça e discutem futebol (é mais comum que sejam jovens locais bebendo cerveja e discutindo... Bem, discutir é um termo forte). Que não há sequer o direito de ouvir uma presidente eleita falar –porque a minoria que perdeu a eleição coloca as empregadas a bater panelas, para impedir que mesmo quem a elegeu (começando por suas mucamas) possa democraticamente ouvi-la.

Talvez os urubus que sobrevoam a Vila Nova Conceição não estejam apenas atrás de animais mortos no parque do Ibirapuera. Sofisticados como os moradores daqui, sobrevoando como uma metáfora sobre os girassóis, miram também a carniça resultante da miséria humana. E vão direto à fonte.


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