Folha de S. Paulo


O caminho na selva amazônica é ameaçador, mas recompensa o esforço

"E como é o banheiro? Aliás, lá tem banheiro??"

A pergunta deve parecer estranha para quem leu minha última coluna, que citava hoteis como Copacabana Palace, no Rio de Janeiro, ou Plaza Athénée, de Paris. Um lugar sem banheiro?

A resposta que ouvi, deixo para o final, em respeito aos estômagos mais fracos. Antes, relato as agruras e recompensas da caminhada que se seguiu, há 15 dias, numa trilha na selva amazônica.

Já estive outras vezes na Amazônia. Mas sempre, voltando das caminhadas, encontrava o conforto de um hotel ou de um barco, com cama, mesa –e, claro, banheiro.

Agora, porém, passaria alguns dias numa oca de índios huitotos, na selva da Colômbia, fronteira com o Brasil. A cidade mais próxima, Letícia, é separada apenas por uma rua da brasileira Tabatinga.

Éramos o grupo multinacional de pesquisadores, jornalistas e também chefs com o nome de Cumari (tinyurl.com/cumari), que investiga uma gastronomia sustentável para a Amazônia: a floresta e seus povos. A expedição foi organizada pelo Sinchi (Instituto Amazónico de Investigaciones Científicas) colombiano.

Josimar Melo

A caminhada até a aldeia seria envolta em calor, mosquitos e umidade, com muitos trechos sobre charcos apenas com troncos de árvore, estreitos e escorregadios, como pontes improvisadas.

"Pisem como um louro", dizia o guia, mostrando os pés apontados para dentro: no caso de escorregões seria mais fácil equilibrar. Não me habituei e andei como um pato, pés virados para fora. Só funcionou porque improvisei um cajado para me apoiar –quando havia onde apoiar.

Apoiar a mim e à minha carga: uma mochila onde, seguindo as instruções, estavam itens enormes como rede, mosquiteiro, cordas, toalha, além de repelentes, prato, copo, talheres. Muita coisa para quem, em viagens, mochila era apenas uma forma de levar o laptop, deixando mãos livres para o free-shop.

Três horas de caminhada, 20 quilos nas costas, muito suor (mandaram vestir-nos dos pés à cabeça, contra picadas). Sensação de não chegar nunca. E, se chegar, não existirá banheiro...

Mas a recepção dos huitotos (havia também tikunas), em sua enorme oca de mais de 300 metros quadrados, foi gratificante.

Aprender segredos no trato da mandioca, diferente do que vemos no Brasil ou no Peru; provar moquéns e cozidos de peixes, cotia, capivara; mascar mansamente o mambe (pó finíssimo de coca); reverenciar a incansável lide culinária das mulheres; e provar o melhor ají negro (pasta de tucupi reduzido com pimenta e formigas) da vida; valeram a caminhada.

Banhar-se no fresco igarapé Takana, um afluente do Amazonas, estava longe de ser um sacrifício. Dormir na rede, envelopado em mosquiteiro, tampouco foi um grande desconforto.

E teve o amanhecer em que fui aliviar a bexiga fora da oca, imenso banheiro de milhões de hectares. Sorvendo o frio hálito da madrugada, vi a claridade ameaçar no horizonte verde a noite estrelada.

Ali onde a luz se insinuava era o leste, constatei; pouco adiante, o Brasil. Separado por uma fronteira artificial, que não escondia que a Amazônia é ela própria uma nação indivisível.

*

1 - A resposta que ouvi sobre o banheiro: "Há somente um buraco no chão, seguro durante o dia; mas à noite aparecem os ratos; e, atrás deles, as serpentes". Mas vi que, durante o dia, o lugar não assusta tanto. À noite, preferi não conferir.

2 - Após três horas de caminhada, o guia disse que na verdade ela durou menos da metade... acredito.

3 - E os 20 kg da mochila talvez fossem menos. Meu filho de cinco anos pesa menos que isso, mas mais que a mochila. Delírios tropicais.

4 - Fotos podem ser vistas no instagram @josimarmelojornalista.


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