Folha de S. Paulo


Bela e deslumbrada, série documental 'Chef's Table' mais parece ficção

Damian Dovarganes/AP
In this Wednesday, April 15, 2015 photo, chef Niki Nakayama, left, and assistant chef Carole Lida work on plating their kaiseki menu, the traditional Japanese culinary practice at Nakayama's n/naka restaurant in Los Angeles. Nakayama is one of just six chefs to be profiled on Netflix's first homegrown documentary series,
A chef Niki Nakayama (esq.) e sua assistente Carole Lida, retratadas em episódio de "Chef's Table"

Hoje todos sabem que um jeito de conhecer o mundo é por meio da comida. Com a série "Chef's Table", da Netflix, parece que também podemos conhecer um país por meio de seus chefs.

Mas a série vai além. Tenta mostrar pelo mundo uma casta de super-homens, como realçam os repetitivos movimentos em câmera lenta (chefs flutuando a cada passo –só falta a capa tremulando) e as infinitas tomadas em que olham miticamente o horizonte, como estátuas de deuses dominando a criação.

Que fique claro: sou totalmente favorável a que se dê aos chefs de cozinha a importância e o reconhecimento que merecem seu árduo trabalho e eventuais lampejos criativos. O que é diferente de pintá-los como perfeitos e imaculados: mais do que um exagero, é um embuste. Conheço há muito vários dos personagens da "Chef's Table" e posso garantir: são grandes artistas, mas... Santos?

Pois é assim que são tratados. Embora apresentada como documentário, a série parece mais uma hagiografia –que não se trata de história, mas de adoração. Algo como ficção baseada em fatos reais.

Se fosse um programa de receitas, não importaria tanto a pessoa. Mas a série não foca os pratos, e sim os chefs. Um bom documentário mostraria vários aspectos –inclusive os contraditórios ou polêmicos– dos personagens. Alguém aí gostaria de um documentário sobre Machado de Assis, Richard Wagner, Roberto Carlos, mostrando só uma versão "oficial"? Não é importante, até para entender e apreciar a obra, conhecer também erros, fraquezas, contradições, ouvir opiniões divergentes?

Mas na série a história é contada pelo próprio chef, relatando suas gloriosas conquistas, com depoimentos apaixonados de jornalistas e fãs. Mesma linha de outro pretenso documentário do diretor David Gelb, "O Sushi dos Sonhos de Jiro" (2011).

Este retrata um doce velhinho, sushiman de Tóquio, que apaixona o espectador (câmera lenta, horizonte etc.) sem mostrar que o habilidoso sushiman, por trás das lindas imagens, é também tirano, racista, grosseiro, um ser intragável que oprime o filho e faz boa parte da clientela, recebida com a frieza do aço, sair indigesta e jurando nunca mais voltar.

"Chef's Table" também endeusa os chefs. Os episódios parecem publicidade com eficiente apuro estético (até o ponto de enjoar), livres de máculas e críticas (não haveria clientes, jornalistas, até rivais com visões destoantes?).

Deslizes, só se os próprios chefs os "confessam", e seguidos de lições edificantes. Dan Barber admite que é grosso com a equipe, mas emenda que luta para mudar. Alex Atala confessa que usou drogas em excesso, mas o LSD o levou a uma revelação.

Defeitos mesmo, somente de chefs "de fora". Grant Achatz descreve Charlie Trotter como um cruel manipulador –mas o finado (um antipático e fantástico cozinheiro) não é um dos santos da série.

Será mesmo que nenhum dos chefs retratados é tirano com a equipe; é tão vaidoso que às vezes obstrui sua atividade; é tão ególatra que atropela sem piedade (mas com toda dissimulação!) seus colegas; serve às vezes "criações" que não são suas; faz alguns pratos mais para a mídia do que para o paladar?

Na vida real, há quem faça tudo isso –e muito mais. Mostrar esse outro lado ajudaria o público a entender que uma obra de arte, mesmo quando beira a perfeição, nem por isso é feita por gente perfeita. Quase sempre, é o contrário: é da imperfeição humana, de fraquezas que às vezes compensamos amplificando nossas parcas qualidades, que surgem emocionantes criações.

Esconder isso, pintando chefs como semideuses, é omitir a natureza humana, uma mistificação que não faz bem à arte, à gastronomia –ou aos chefs.

Valentina Fraiz
Ilustra Josimar

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