Folha de S. Paulo


Cupidez em SP

Na elegante avenida Madison, em Nova York, fica uma joia arquitetônica: a mansão Villard, construída pelo milionário de mesmo nome em 1882. Marco histórico, ela é hoje a entrada de uma propriedade particular (o hotel Lotte New York Palace), mas seus imponentes portões de ferro, que dão para o grande pátio, ficam abertos para qualquer passante.

O hotel é bastante exclusivo. Ele utiliza os cômodos da mansão como salas de convenção, instalação para o bar Rarities (um clube fechado com bebidas preciosas e decoração original restaurada) e para seu restaurante, que está em vias de ser reaberto (o espaço sediou, no passado, o Le Cirque).

Seus 909 quartos ficam na torre de 55 andares construída logo atrás e encimada por um setor ainda mais exclusivo: com entrada separada no lobby, o Towers ocupa os 14 últimos andares, com 176 quartos, enormes suítes e serviço diferenciado.

Mas não é preciso ser hóspede, nem ser rico, para entrar naquele pátio histórico e se refestelar nas cadeiras e poltronas, sombrear-se sob os ombrelones, comer seu lanche trazido da rua. A propriedade é particular, mas o espaço é público.

É algo comum em Nova York, um uso normatizado pelas autoridades. Na própria Madison e imediações há vários edifícios mais modernos, com fachadas envidraçadas, que franqueiam seus andares térreos para passagem ou descanso da população. Medida civilizada que dispensa explicações.

Vendo isso não consigo deixar de pensar em São Paulo. Pois como cidadão testemunhei um dos grandes crimes urbanos dos tantos cometidos na cidade –a construção da avenida Nova Faria Lima, em especial o trecho que cortou os bairros do Itaim Bibi e da Vila Olímpia nos anos 1990.

Depois da decisão de rasgar uma via entre o Alto de Pinheiros e o Brooklin, fazendo terra arrasada de antigos bairros pelo caminho, abriu-se uma oportunidade de ouro para a cidade: construir uma enorme avenida praticamente do zero. Ou seja: colocar em prática tudo o que fosse possível em termos de modernidade urbanística, bom gosto arquitetônico e visão humanista de cidade.

Foi o oposto, uma tragédia. E não falo apenas da insensibilidade e cegueira urbanística com que se derrubou, sem qualquer planejamento, antigos bairros: o plano Haussmann também rasgou Paris no século 19, mas daquilo resultaram avenidas como a dos Champs Elysées, por exemplo.

Acontece que São Paulo estava nas mãos da cupidez de personagens como o prefeito Paulo Maluf e o arquiteto Julio Neves. Para alegria de especuladores bem informados que compraram casinhas a preço de esfiha para revendê-las pela cotação do caviar, a dupla legou à cidade o monstrengo que hoje conhecemos, especialmente o citado trecho da Vila Olímpia (o primeiro trecho eles inauguraram na gestão anterior de Maluf): uma avenida feita para carros, não para gente, com edifícios cafonas para empresas ricas e sem contrapartida para a população.

Já imaginaram se os edifícios fossem de arrojada arquitetura, contribuindo para enriquecer a paisagem urbana, e obrigados a ter áreas de acesso público no térreo? Já imaginaram se a rua tivesse largas calçadas com equipamentos para os passantes? Já imaginaram se ao longo da avenida tivesse sido planejada a instalação de restaurantes, bares, cinemas, livrarias e serviços que entretivessem, atraíssem e sociabilizassem a população?

Como já percebeu qualquer visitante, São Paulo é uma cidade para iniciados. Para aproveitá-la é preciso conhecer os segredos que se escondem por trás de sua feia arquitetura. Mas não precisaria ser assim. Essa foi uma oportunidade de ouro simplesmente jogada no lixo.


Endereço da página: