Folha de S. Paulo


O argentino do paletó azul

Era uma tarde ensolarada no aeroporto de Lisboa. Mas a morna placidez típica de Portugal era quebrada pelos gestos impacientes e pelas queixas em voz alta de um personagem estranho.

Ele falava português brasileiro com sotaque argentino –e vituperava sozinho contra os portugueses, "Gente desorganizada"; "imagine não ter lugar na executiva"; "terei que ir com eles na classe econômica"; "bagunça de país".

Fungando sem parar, repetia maquinalmente uma sucessão de gestos: tirava o paletó pelo lado esquerdo, passava-o diante do corpo, e voltava a vesti-lo pelo lado direito, como um toureiro alucinado.

Seguiu assim no embarque para o curto voo rumo a Paris. Sentei-me sozinho numa fila de três lugares, de onde ouvia seu queixume antilusitano entre muitas idas ao banheiro.

Consegui cochilar e despertei em Paris. Ao desatar o cinto de segurança, estendi a mão para a poltrona ao lado e gelei: meu paletó (com passaporte e dinheiro nos bolsos) havia desaparecido.

Sem passaporte, em tempos pré-União Europeia, eu nem sequer entraria na França. O primeiro impulso foi emitir a fala teatral: "Parem este avião!". Mas, pena, ele já estava estacionado. Restou-me então outra, também cinematográfica: "Ninguém sai deste avião!".

Aos comissários, expliquei em voz alta: "Alguém roubou meu paletó com dinheiro e documentos!". Foi o momento da vingança dos portugueses contra o detrator que os ofendia desde o embarque. Múltiplos dedos o apontaram, repetindo em atropelo: "Foi ele! Eu vi! Pegou seu paletó e levou lá para trás!".

O argentino viu-se acuado e aterrorizado. Um comissário foi até o fundo do avião –lá estava meu paletó, azul como o do gatuno, jogado, mas intacto: nada faltava nos bolsos.

Saí seguido pelo colérico personagem, acusando-me de tê-lo... acusado. Pelo que depreendi, em suas andanças inquietas pelo avião, com seu tique frenético, ele vestiu por engano meu paletó. Em uma ida ao banheiro, percebendo que não era o seu, o jogou por ali.

Tentava ignorá-lo quando ele, irritado, arremessou: "Você sabe com quem está falando?!". (A minha frase sobre parar o avião era melhor.)

Ele mesmo respondeu, mas enunciando um nome duplo –"Eu sou Frankie Amaury!"– que reconheci como o da grife que ele e o sócio mantinham no Rio de Janeiro. E ri intimamente quando ele prosseguiu:

"Conheço gente importante! Conheço jornalistas! Vou descobrir quem é você e acabar com você! Vou ligar para a coluna social da Folha e contar que você me humilhou por causa desse lixo do seu paletó!"

Não resisti e finalmente falei: "Olha, para poupar seu trabalho de falar com os jornalistas: você já está falando com um. Quanto à colunista social da Folha, deixe que eu mesmo conto, eu trabalho na mesa ao lado. E, aproveitando, vou dizer às donas da Tweed o que você achou do paletó delas, vai ser ótimo para quando vocês forem a São Paulo".

Já na fila do passaporte, ele ficou lívido. Transformou-se. Seus olhos marejaram. E ele balbuciou: "Você me fez chorar... Ninguém nunca me fez chorar...".

Ainda me abordou na fila do táxi. Propôs: vamos colocar uma pedra nisso? Esquecer o incidente? E estendeu a mão. Retribuí, aliviado –até ouvir seu último comentário: "Sabe que você tem as mãos lindas? O que vai fazer hoje à noite?".

Pulei voando no táxi. Mas só depois de me certificar de que o paletó azul que vestia era mesmo o meu.

*

Anos depois, em 2004, soube pela imprensa da morte de seu sócio, Amaury –e que ele, Frankie, era o principal suspeito. Seu julgamento seria no ano passado, mas não houve: o argentino do paletó azul morrera do coração dias antes.


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