Folha de S. Paulo


As mulheres de Arequipa

Arequipa, cidade a 2.300 metros de altitude no sul do Peru, terra do grande escritor (e franco-atirador sem mira) Mario Vargas Llosa, tem ao menos dois enormes atrativos.

De cara, o centro histórico tombado pela Unesco –a plaza de Armas foi erigida em 1543 e mantém, como as ruas ao redor, o estilo colonial. Ladeada por vulcões e envolta pelo ar rarefeito, também preserva o impressionante convento de Santa Catalina (de 1580).

O outro patrimônio são as mulheres de Arequipa –especialmente as que comandam, até por gerações, as picanterias, restaurantes típicos locais.

Na origem eles eram bares para tomar a chicha, um fermentado leve de milho negro germinado, feito (desde antes dos incas) e servido por mulheres. Quem ia às chicherias para beber ganhava alguns petiscos ("picantes") para acompanhar. Hoje é o inverso: as pessoas vão às picanterias para comer os vigorosos pratos locais e a chicha é oferecida de graça.

O que não mudou é que as mulheres ainda dominam o ambiente. De geração em geração elas comandam as salas e as cozinhas. Mesmo um trabalho repetitivo e extenuante –usar uma pesada pedra (o batán) para moer os ingredientes dos molhos– também é manejado principalmente por mulheres, algumas com décadas de ofício, e sempre com um chapelão na cabeça.

Moídos num processador, os molhos perecem em horas. Pacientemente esmagados com o batán, eles podem durar quatro dias, e com uma consistência inigualável. A verdadeira picanteria usa o batán; além disso, a comida deve ser feita na lenha, e as ânforas de chicha devem estar sempre fermentando a bebida.

Segunda maior cidade do país (com mais de 800 mil habitantes), Arequipa tem um temperamento forte, dizem os locais, afirmando que todos os movimentos libertários do Peru começaram ali. E na altiva cidade peruana, fortes mesmo são as mulheres, completam elas, sem que ninguém proteste.

Pelo menos foi o que ouvi das orgulhosas e eloquentes proprietárias de maravilhosas picanterias. Como a deliciosa La Nueva Palomino (facebook.com/LaNuevaPalomino ), com mesas dentro e fora, fogões a lenha fumegando e a espaçosa presença da herdeira Mónica Huerta (o documento mais antigo comprovando a existência da casa é de 1895).

Tranquila, cheia de sabedoria, Benita Quicaño Guillén toca a La Benita (labenita.com ) numa tradição de sete gerações, num espaço generoso que expõe de forma didática todo seu processo de produção (seu filho, Roger, abriu agora uma filial no centro histórico da cidade).

Mais eloquente é a festiva Saida Villanueva Salas ("em Arequipa quem manda são as mulheres"), dona da picanteria La Cau Cau, também com cara de casa e quintal familiares. Instituição histórica é La Lucila (picanterialalucila.com ), onde, embora a matriarca já não esteja viva, segue intacta a velha cozinha de lenha de mais de cem anos.

Para comer, há 700 receitas listadas na cozinha arequipenha –nenhuma de ceviche: trata-se de uma cozinha mais camponesa, de cozidos opulentos e frituras crocantes, alguns assados, muitos legumes e tubérculos locais, ajíes (pimentas) e laticínios.

São pratos como rocoto (pimentão picante) recheado com carne e queijo, chupe (sopa) de camarões, chaque (guisado) de carnes, pebre (sopa de galinha ou cordeiro), almendrado de pato (ave com amendoim), cuy chactado (porquinho-da-índia frito sob uma pedra), queso helado (sorbet de leite). Estes e mais centenas. Que nos alimentem as imperiosas mulheres de Arequipa.


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