Folha de S. Paulo


Música no ar

Ao visitar restaurantes em viagens, tenho sérias dúvidas sobre se quero ou não ser envolvido pela música típica da região.

Devo ser meio disléxico ou ter algum distúrbio que me faz ter dificuldade em aguçar dois sentidos ao mesmo tempo. Ou vai ver que sou normal –já ouvi dizer que quem consegue assobiar e chupar cana simultaneamente ou prestar atenção em um filme enquanto lê um livro, esse sim!, é que é fora do normal. Ainda que um doente felizardo.

De maneira geral, quando vou a um restaurante do qual espero algo especial, praticamente ignoro o que está sendo tocado. E já reparei que nos verdadeiros grandes restaurantes simplesmente não há música ambiente: ali é o templo de uma só arte –se outras existirem no pedaço, como a arquitetura ou a cerâmica das louças, estão ali para realçar a comida, não para competir na atenção do comensal.

De toda forma, a música ambiente é mais fácil de abstrair, no caso de quem não queira dividir sua atenção. Isso vale tanto para os discretos pianos manejados ao vivo por músicos humanos (que se tornam cada vez mais raros) quanto para música mecânica ou eletrônica soprada por alto-falantes que ficam dispersos pelo salão.

Mas nos restaurantes turísticos fica difícil ignorar a intrusão –porque ela é em geral alta, invasiva e muitas vezes até agressiva na forma que os músicos se apresentam.

Um "chansonnier" francês cantando num restaurante turístico em Paris consegue ser um pouco mais discreto –embora frequentemente se deixe vencer pelo entusiasmo e pelos baixos do acordeão.

Um grupo de tarantela em uma trattoria siciliana, nem um pouco. Se quiser conferir, basta ir almoçar em qualquer domingo, em São Paulo, nas cantinas mais tradicionais do Bexiga (região central).

No México, os mariachis brindam os clientes nos restaurantes à beira-mar –frequentemente em grupos muito mais numerosos do que as pessoas à mesa, o que permite concluir qual dos dois lados sai ganhando caso os clientes estivessem desejando conversar.

Nem preciso falar do ensurdecedor pagode estrangulando as nossas famosas feijoadas (meu reino por um chorinho!).

Tanto barulho cria uma situação em que a comida fica sendo bem menos importante que o espetáculo turístico, o que é uma pena –afinal, o turismo está cada vez mais associado à gastronomia, que não deve ser prejudicada na experiência do visitante em um lugar.

Houve tempo em que muita gente, ao viajar com um fim específico, como ver museus no México, mergulhar na Austrália, viver a natureza na Amazônia, temia estranhar a comida local. A pergunta "será que lá tem McDonald's?", como se comida desnaturada fosse um refúgio diante do perigoso desconhecido, já foi comum entre os viajantes.

Hoje há uma expectativa diferente: no lugar do receio, muitos viajantes ficam curiosos com o tipo de comida que encontrarão. Mesmo que esteja indo à Alemanha para ouvir música clássica, o turista não deixa de perguntar o que se come por lá e pedir dicas de restaurantes.

Assim sendo, valeria a pena mudar um pouco a ideia do que deveria ser um "restaurante turístico", como se fosse um grande bricabraque com tudo o que é bugiganga que teoricamente representa o país, incluindo aí petiscos e pratos típicos.

O "restaurante turístico", na verdade, deveria representar bem a gastronomia local. Tudo bem se tiver também "decoração típica" e, ainda por cima, "músicos típicos"...

Mas que eles sejam acessórios discretos para não atrapalhar o turista que, cada vez mais, quer conhecer também os sabores dos lugares que visita.


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