Folha de S. Paulo


Frutos do asfalto

O turista que passeia por outras cidades –e que não é escravo do celular– costuma caminhar de cabeça erguida, apreendendo a paisagem. Conhecendo, usufruindo. Mas talvez não faça o mesmo por onde mora –embora haja sempre coisas a descobrir também onde moramos.

Em São Paulo, por exemplo, ao caminhar de cabeça baixa, podem-se perder alguns flashes de arquitetura (serão poucos, no entanto, os que vale a pena admirar), mas principalmente uma outra riqueza urbana: a visão das árvores, pinceladas verdes e coloridas, de muitos matizes, que são mais abundantes na cidade do que a caricatura que fazemos dela nos faz crer.

São árvores que ficam viçosas o tempo inteiro, sempre dando cor e sombra, e que, diante do confuso regime de estações do ano e das diferentes variedades de plantas, terminam florindo o ano todo, cada qual em seu momento.

Entre essas árvores há também as frutíferas, que, em São Paulo, ainda sobrevivem, em meio ao trânsito e ao asfalto, embora cada vez menos.

Não me lembro se em Paris ou em Nova York já avistei frutas no pé enquanto caminhava pela cidade. Mas, terceiro mundo afora, lá estão elas. No Brasil, fazem parte da paisagem urbana de cidades com natureza mais pujante –temos jacas em Salvador, mangas em Belém. Mas o mais bacana é que mesmo na mais árida São Paulo, se olharmos bem, as encontramos, e não somente nos bairros mais ricos.

Mesmo que ninguém as plante, os passarinhos escatologicamente vão semeando os canteiros. E, com isso, conferem a esta cidade um atrativo muitas vezes ignorado por turistas e moradores. (Sempre me pergunto por que nunca vejo crianças, passantes, estudantes, passantes em geral em volta de uma pitangueira carregada... Imagino serem os males de uma geração de moleques já criada em toscos conjuntos habitacionais cimentados na periferia pela especulação imobiliária.)

Eu sou um consumidor atento de amoras e pitangas do asfalto. O bom delas é que, mesmo quem anda olhando para o chão, termina encontrando-as –as manchas pretas tingindo o solo, ou aquelas alaranjadas nas calçadas, são um sinal de que naquele preciso local é hora de olhar para cima.

Às vezes, infelizmente, para cima demais: as frutas mais maduras estão muito no alto. Vontade de ter uma escadinha portátil sempre à mão, ou inventar um pau de selfie com um cestinho na ponta.

Nos meus atuais trajetos a pé são essas, amoras e pitangas, as mais frequentes. Mas já avistei goiabas e jabuticabas, mesmo que algumas vezes, separadas da rua por muros ou cercas particulares.

E tem o abacateiro da vizinhança, sempre no meu caminho, majestoso em sua admirável moradia: um canteiro na calçada, num ponto em que a ofensiva muralha que blinda o prédio onde vivem alguns dos maiores magnatas do Brasil faz uma respeitosa curva para não incomodar a árvore.

Durante anos caminhei para o trabalho passando diariamente diante de um majestoso pé de uvaia. Já de manhã olhava para cima e via aquelas frutas de tez ensolarada e babava imaginando-as com a acidez domada numa compota bem brasileira, ou numa batidinha com boa cachaça e uma dose necessária de açúcar.

Nunca surrupiei nenhuma: elas pendiam sedutoras sobre a calçada, mas o tronco de onde brotava a copa ficava atrás de um muro, inalcançável. E as que, do alto, iam dar ao chão, com sua fina pele sedosa e frágil, se espatifavam.

Até que reformaram a casa e, como primeira providência, liquidaram a árvore que, se nunca me forneceu seu fruto, me dava todo dia água na boca e uma visão mais terna e idílica da cidade.


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