Folha de S. Paulo


Amores passageiros

"Nós passamos muito pouco tempo juntos", disse Anna, em inglês (embora fosse alemã), num táxi (manhã ainda escura) naquele inverno de sua cidade natal. Chovia. Inglês fora a língua que usaram no jantar que o escritor brasileiro tivera na noite anterior com a jovem assistente da editora que o recebia.

O restaurante era sofisticado na comida e jovial na atmosfera, ótimo para descontrair um compromisso protocolar de boas-vindas.

Surpreendeu-o a juventude da anfitriã –que, naquela noite, representava o diretor que ele só veria no dia seguinte. Uma jovem da idade de seus filhos (metade da sua própria), um palmo maior que ele, quadris mais largos do que seria seu tipo. Anna.

Nada a esperar. Mas no correr da noite o encontro profissional foi se dissolvendo numa amena troca de generalidades e numa interessante conversa sobre o país, a cultura e eles mesmos. Logo havia uma intimidade difícil de imaginar que surgisse, assim num átimo, entre pessoas de origens e idades tão distintas.

Na saída, chovia. Ela apareceu com um guarda-chuva (só um), e, no lugar de um táxi, foram caminhando na noite úmida muito juntos, e mesmo assim se molhando.

No hotel a despedida foi um abraço demorado e caloroso. Imantado. Mas limitaram-se a beijos nas faces e um franco sorriso espelhado.

De manhã, muito cedo, Anna o levou de táxi a uma reunião da qual ela não participaria. No caminho, poucas mas gentis palavras e certo clima no ar. O magnetismo pareceu confirmado quando ela, ao se despedir, lamentou o pouco tempo que tiveram.

"Escreva-me isso", foi a estúpida recomendação que só mesmo um escritor, fascinado por um suposto efeito irredutível do preto sobre o branco, poderia fazer. E, de fato, já noite, ela enviou pelo celular: "A mensagem continua a mesma: passamos muito pouco tempo juntos" ("the message stays the same: we've spent too little time").

Uma promessa de aventura, ao alcance da mão? O escritor, já envolvido meio platônica, meio eroticamente, pela jovem que não fazia seu tipo, imaginava até onde poderia ir. Não muito longe –o dia seguinte seria cheio e o voo de volta sairia já na outra manhã.

Mas respondeu: "Sim, muito pouco tempo; às vezes a vida é ardilosa, injusta... Quem sabe um dia podemos consertar isso? Que pretensão, 'consertar a vida'... Mas por que não?".

Anna: "Temos que ser ambiciosos; vamos assumir que podemos, sim, 'consertar a vida'".

O escritor: "Talvez seja apenas um pequeno momento na vida, mas você é jovem o suficiente para ser aventureira e eu, velho o bastante para não ter (quase) nada a perder... A combinação perfeita!".

E voltou-lhe a lembrança do calor da jovem no abraço no hotel, a conversa inspirada que tiveram no jantar e a melancolia da despedida na manhã chuvosa.

(A ideia de uma aventura amorosa numa viagem, quem será que nunca teve -a ideia, ou a aventura? Quem diria que é uma carta fora do baralho, cada vez que se coloca o pé na estrada?)

Ele propôs que se encontrassem uma vez mais, um último drinque que fosse, antes de partir.

A resposta, tão breve quanto taxativa: "Não tenho a intenção de te dar uma ideia errada" ("not my intention to give you the wrong idea").

Só isso. Fim da história.

*

O episódio acendeu uma faísca que já não tinha mais lugar na bagagem do escritor itinerante. Ele se deu conta de que viagens muito organizadas, muito previsíveis, cronometradas, mesmo que a trabalho, são um porre; e que qualquer passagem, para qualquer lugar, deveria vir sempre acompanhada de um passaporte para a fantasia.


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