Folha de S. Paulo


O feitiço do tempo (e do lugar)

Alguma vez você abriu a despensa e se deparou com um vidrinho de rótulo envelhecido, coberto de caracteres indecifráveis de alguma língua aparentemente morta e de utilização tão incerta que só não é um problema porque, de toda forma, o prazo de validade não recomenda o uso há anos?

É como abrir um armário e entrar na trajetória em queda livre de algum objeto –tipo uma estatueta medonha, com cara de assassina, mesmo– que ficou por eras trancafiada enquanto você imaginava em que nicho da decoração a colocaria (e que agora, encarando você como uma esfinge, o desafia a descobrir de onde veio: Bali? Rapa Nui? Waikiki? Mercado de pulgas da praça Benedito Calixto?).

Esses troféus devem existir na casa de todo mundo que já viajou com frequência. Ou que faz compras com frequência mesmo em raras viagens.

Sua existência tem uma explicação. Uma boa viagem tem o dom de se apoderar de nós um pouco, como um feitiço momentâneo. Especialmente no momento em que está acontecendo. Aquele pôr do sol no horizonte lânguido do mar parece o mais inebriante de toda uma vida –mesmo que a exata sensação, que você já tivera ontem, vá se repetir amanhã, na mesma hora e local.

Mas são sensações que valem a pena sentir. Aproveitar. Viver.

O problema é quando se parte para o mundo material. A memória de deslizar como pássaro por uma encosta gelada, no momento de atrito zero entre o esqui e a brancura da neve, é algo que você pode levar para casa e que vai ocupar sinapses de seu cérebro e fibras de seu coração –mas nem um centímetro da sua geladeira nem das frestas que sobram na sua mesa de centro.

Já os mimos materiais que você traz... Há que ter espaço para eles, além da memória para não errar sua origem diante das visitas. (Como minhas duas estátuas africanas, mais resistentes que meus neurônios restantes, e que só posso apresentar como originárias "daquele povo que tem pescoços compridos, sabe?, dos ancestrais da Naomi Campbell. Ou seria Grace Jones?".)

Por sorte não sou do estilo comprador. E, quando compro, são coisas que teoricamente ocupariam espaço físico por pouco tempo –pois são comestíveis, fadadas à morte rápida. No entanto, mesmo aí somos traídos pelo feitiço do momento: aquele mesmo que nos faz sentir, no instante, que o tal pôr do sol é único e indispensável.

Na Indonésia, você se encanta pelos sabores picantes, e tem certeza que na volta vai querer –vai precisar!– senti-los todos os dias. E volta cheio de potinhos e sachezinhos das mais variadas cores e odores (sem lembrar que também o agradam a comida brasileira, a italiana, a francesa, e que são apenas três refeições por dia).

Depois de uma temporada na Provence, você finalmente entende que a vida não faz sentido sem umas taças de vinho rosé todo final da tarde. E volta carregado de garrafas (sem perceber que, se não trouxer também o canto vespertino das cigarras e o sopro do Mistral, não será a mesma coisa).

Do México, uma dezena de pimentas secas enormes e enrugadas (mas sem os tacos, sem huitlacoche, sem carnita, sem tudo o que elas deveriam condimentar).

O resultado é que, se é delicioso beber e comer coisas típicas no seu lugar de origem, pode ser estranho, ou no mínimo extemporâneo, tentar reencontrar a mesma sedução fora daquele tempo e lugar. Sempre será divertido. Mas é difícil torná-las um hábito, de tão longe.

E é aí que pode acontecer aquela surpresa, ao abrir a despensa: este vidrinho com esta pasta marrom... Ela não era mais clarinha? E veio de onde mesmo... Bali? Rapa Nui? Waikiki? Benedito Calixto?


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