Folha de S. Paulo


O mundo atrás da porta

Quando o sol da praia começa a torrar seus miolos, é hora de fritar o torresmo. Ou cozinhar o feijão, assar o peixe, ventilar a brasa do churrasco ao abrigo de um teto salvador e, com sorte, de uma brisa que alivia.

Tenho passado os derradeiros dias do ano (e os primeiros do ano seguinte) na casa de amigos queridos no litoral norte de São Paulo. O mar é bonito, a caipirinha da barraca é séria, as crianças têm amigos e ondas para se distrair. Mas, como é de se esperar, o sol é impiedoso, o calor mesmo sem sol é brutal, a linda areia é cúmplice implacável do protetor solar para criar um desagradável emplastro sobre a pele.

Minha fuga é discreta. Agora com o pretexto de proteger o filho pequeno da cruel canícula, evaporo como uma miragem no deserto.

E corro para o fogão, que, mesmo escaldante, é para mim um recanto acolhedor e refresca a mente.

A casa, à beira do rio, fica apoiada sobre o manguezal, que pinta de verde a paisagem. Nele se avista ou se escuta o tiê com sua penugem de fogo, o canto esbugalhado de galinholas selvagens, o enorme e furtivo lagarto rebolando no chão entre as folhas, os caranguejos se tragando terra abaixo ou os saruês, às vezes em família, numa organizada fila indiana, escalando os galhos do mangue em direção ao telhado –ou de lá voltando.

E, enquanto a natureza exubera ali ao lado, dou curso ao ciclo da vida, aprisionando mexilhões na cataplana com vinho e bacon, guarnecendo de legumes o peixe inteiro das redondezas ou fazendo chiar na grelha as carnes que, claro, não são locais, vieram do Santa Luzia, do Santa Bárbara ou de fonte semelhante, com nome sacro ou não.

Mas não é apenas um hábito praiano. Nos passeios no campo, na montanha, ele se repete. E nas grandes cidades também.

Já antes da popularização do Airbnb, eu procurava locações temporárias de casas. Se pudesse ficar fora ao menos sete dias, o mínimo exigido, tentava me hospedar em algum lugar que tivesse cozinha –pelo menos um apart hotel.

Nos países de exuberante cultura gastronômica, não me basta comer em bons restaurantes; uma comichão me impele a ir ao mercado, comprar os belos produtos locais e prepará-los. Ainda que apenas um mexido com cogumelos silvestres num outono de qualquer hemisfério.

A tentativa de encontrar um fogão para chamar de meu só teve interrupção sistemática uma vez. Durante cinco anos, uma grande amiga, a melhor amiga, que morava no Japão, mudou-se com marido e filhos para Paris. Morava num belo apartamento da empresa, equipado até mesmo com uma ampla sala de jantar, coisa rara para um jovem casal na França.

Naquele bairro fora dos centros turísticos, procurei por um hotel simpático e o encontrei na rue Fondary (era o mais barato e simples do guia de hotéis de charme e a uma rápida caminhada da cozinha amiga).

Nesses cinco anos, sempre que tropeçava por Paris era ali que ficava. E nos intervalos do trabalho –ou, quando ia para lá esticando alguma passagem por Londres, Milão, Amsterdã– tínhamos aquela rotina, apenas vagamente interrompida por eventuais passadas num museu, nalguma apresentação musical ou num bom restaurante: era mercado, cozinha, mesa.

Podia ser o vizinho mercado de rua da avenue de La Motte-Picquet, debaixo dos trilhos do metrô aéreo; podia ser o mais sofisticado mercado da avenue du Président Wilson, divisando a torre Eiffel, perto do museu do Homem; podia ser a quitanda no caminho, o queijeiro local... Tudo acabava na panela e na mesa.

Nas tórridas areias tropicais, no frio inverno europeu, o caminho mais curto para me fazer parte do mundo, mas também me sentir em casa, é explorando a porta da cozinha mais próxima.


Endereço da página: