Folha de S. Paulo


Belezas e fantasmas do passado

Tanto quanto pode me embevecer uma instalação de arte contemporânea, edifícios e paisagens que registram o passado e o patrimônio histórico podem ser de arrepiar. Talvez o maior dos arrepios eu tenha sentido numa pequena cidade onde se respira o passado e a história: Cartagena das Índias, na Colômbia.

Primeiro, é preciso explicar que Cartagena não é tão pequena assim, tem quase 1 milhão de habitantes. Mas tem, dentro dela, um centro histórico murado, a cidade velha, onde as preciosidades da arquitetura colonial estão admiravelmente preservadas, em combinação com uma vida pulsante, inclusive à noite.

E, também, se quisermos aplicar à cidade algum chavão do tipo "joia do Caribe", é bom saber que ela não tem nada do estereótipo que se espera da região, tipo praia paradisíaca ou transparente mar de esmeralda. Suas poucas praias são feias, e o que mais vale ali é a vida urbana mesmo –visitar prédios históricos, comer, passear pelos bares.

(Ok, há boas praias nos arredores, mas nada de hotel pé na areia, é preciso pegar um barco para chegar aos lugares mais tipicamente caribenhos.)

Se você gosta de história, Cartagena é um paraíso. Fundada em 1533, foi um importante porto na época colonial, e, por isso, vítima constante dos ataques de piratas e da selvageria da Igreja Católica (cuja Inquisição estava ali bem fincada, de olho na garantia da fé e da economia).

Para respirar melhor esses ecos do passado, o melhor é se hospedar dentro da parte murada. E foi assim que conheci anos atrás o hotel Sofitel Legend Santa Clara, onde os arrepios aconteceram.

O hotel fica num edifício de 1621, que foi o convento Santa Clara. Seu restauro é magnífico: por fora foi mantido todo o antigo edifício, e por dentro instalou-se um hotel moderno, utilizando espaços e elementos arquitetônicos que funcionam como registro dos tempos antigos.

Como se não bastasse o testemunho físico da história, nos poucos dias em que estive lá me dediquei à leitura do livro "Do Amor e Outros Demônios", do colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), um romance cuja história se passa, 200 anos atrás, em Cartagena, boa parte dela justamente nas sombrias instalações do próprio convento.

É um livro de ficção, mas cujo ponto de partida é um fato real (ou não, em se tratando desse autor). Na introdução, ele relata que, quando era um jovem repórter, em 1949, foi a Cartagena cobrir a remoção das criptas funerárias do convento de Santa Clara, onde se espantou ao encontrar uma ossada com uma longa cabeleira de mais de 20 metros.

O fato remeteu sua memória a uma lenda que ouvia quando criança, sobre uma marquesinha milagrosa que possuía enorme cabeleira. Décadas depois ele teria se inspirado nessas lembranças para escrever o romance, lançado em 1994.

No livro, suspeita-se que a menina esteja tomada pelo diabo. Ela é internada no convento, há um padre que procura ajudá-la (mas termina encantado por ela).

E a partir daí se desenrola uma trama de horrores e martírios produzidos pela ignorância e estupidez inerentes à religião.

O hotel que hoje ocupa o antigo e macabro convento é luxuoso e confortável, as áreas de claustro atualmente abrigam restaurantes e áreas de lazer, o sombrio pátio é agora um frondoso jardim onde se toma rum e fuma-se charuto ouvindo o coaxar de minúsculas rãs e o farfalhar das asas de Mateo, o tucano negro que vive no lugar. Mais: do hotel se avista, vizinha, a casa de verão que García Márquez ali mantinha. Hoje só há beleza.

Mas lendo o livro bem ali, passa de vez em quando aquele arrepio que mistura a majestosa arquitetura do passado e o fantasma de sempre –não da menina, mas do terror que pode produzir a ignorância humana.


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