Folha de S. Paulo


A cabeça inglesa do dr. Hussein

Brasileiros são cordiais e acolhedores. Parisienses são ríspidos e mal-humorados. Japoneses são sorridentes e solícitos. Existem vários rótulos que buscam descrever o temperamento médio dos habitantes de diferentes regiões.

Vivi um episódio que ilustrou pelo menos uma das múltiplas facetas dos ingleses –um povo difícil de definir mesmo com estereótipos, dada sua diversidade (e convivência com todos os tipos). Quem me deu a lição foi um inglês de ascendência árabe, um médico chamado Hussein (mesmo nome do temível ex-ditador iraquiano, assassinado pelos prepostos do também temível George W. Bush).

Eu estava em Londres para um evento num dos hotéis mais elegantes e caros do mundo, The Dorchester. Quando lá cheguei, vindo de Paris, meus olhos estavam doloridos, ultrassensíveis à luz –o brilho do celular penetrava como uma navalha.

Naquela noite, por exemplo, participei de um jantar histórico no hotel, preparado a quatro mãos pelos (assistentes dos) chefs Joël Robuchon e Alain Ducasse, os mais estrelados do planeta. Apesar da meia-luz do ambiente, passei o jantar de óculos escuros, e parecia um Ray Charles quando fui conversar com eles.

(A quem interessar possa: comparando os pratos de um e de outro, não sobrou dúvida: Ducasse é impecável, mas Robuchon é um gênio, ganhou de goleada.)

No dia seguinte, no quarto com cortinas cerradas, liguei para o seguro-saúde. Perguntaram se eu queria que o médico fosse ao hotel –eu preferi ir ao consultório, caso ele precisasse usar equipamentos para me examinar.

E assim, quase cego, tateei meu caminho até um táxi do hotel para me dirigir ao consultório do dr. Hussein. A consulta foi rápida. Fiquei lisonjeado quando ele explicou o meu mal: nada grave, apenas "alergia à primavera de Paris". Mais chique impossível... Era só o pólen francês!

Algumas gotas de um colírio com cortisona, que ele já aplicou na hora, e em um dia eu já estaria refeito. Agradeci e, ainda de óculos, disse que pediria à recepcionista para chamar um táxi.

"Mas... você não está no Dorchester?", ele retrucou, o cenho moreno franzido. Pensei que ia dizer algo do tipo: nesse hotel só ficam milionários, portanto se você está lá, deve ser um deles, por que não está com uma limusine do hotel? Ou com seu próprio motorista?

Mas não: a cara de espanto dele prosseguiu enquanto dizia: "Nós estamos próximos ao Hyde Park; você não precisa de táxi, basta pegar o ônibus 74 aqui em frente, ele vai pela Park Lane e o deixa em frente ao hotel". Ainda inseguro, com um espectro de Saramago rondando minha visão, hesitei.

Ele não. Pelo contrário. Quase ofendido, pegou-me pelo braço, saiu comigo à rua e me levou até o ponto. "O ônibus chega a qualquer momento. A cortisona já está fazendo efeito, você enxergará o número do ônibus e enxergará o hotel."

Na cabeça inglesa do dr. Hussein, não fazia sentido usar um táxi no lugar de transporte público, mesmo para um possível milionário, mesmo ligeiramente doente. Mesmo num país riquíssimo, o centro financeiro do mundo.

É verdade que a cultura anglo-saxã, impregnada pelo espírito do protestantismo, detesta gastar dinheiro (ao limite de desprezar prazeres da vida) e adora acumular. Chato. Mas também um país que já viveu agruras da guerra tira dela ensinamentos que têm sua dose de sabedoria.

E não é só porque o brasileiro está no Dorchester que ele tem que menosprezar a cultura comum de usar o transporte público. Mesmo que esteja sofrendo com a chiquérrima alergia à primavera de Paris.


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