Folha de S. Paulo


E aí, comeu?

Gastronomia e turismo nunca estiveram tão ligados desde as bodas celebradas pelo advento do automóvel no começo do século 20, quando o crescente trânsito de viajantes estimulou a disseminação de hotéis e restaurantes. O guia "Michelin" nem falava de restaurantes quando nasceu, em 1900 (somente de oficinas, postos de gasolina, hotéis); mas, 30 anos depois, já os listava e classificava com estrelas.

Numa palestra do Ministério do Turismo da Espanha, poucos anos atrás em Madri, ouvi que, hoje, dos cerca de 60 milhões de visitantes daquele país, 10% vão lá para... comer. Para se ter uma ideia, esse número, cerca de 6 milhões de pessoas, equivale ao total de turistas que vêm ao Brasil.

Antigamente, gourmets iam comer na França ou na Itália. E fugiam de Londres ou Nova York –que hoje têm grandes atrativos inclusive à mesa. E já não é raro ver gente viajando a países como Japão ou Dinamarca (!) para conhecer restaurantes.

E um país como o Peru investe pesadamente naquilo que, descobriram, poderia ser uma atração à altura de seu outro atrativo, Machu Picchu: a gastronomia. Mesmo a França –a França!– anunciou um plano de divulgação da gastronomia (com a ajuda do multiestrelado chef Alain Ducasse) chamado "Goût de France/Good France" para aumentar o fluxo anual de turistas, que já é recordista no mundo –84 milhões por ano.

Então entendeu o que estou fazendo por aqui, por estas páginas? Para mim, aliás, hoje em dia, cadernos de turismo e gastronomia já deviam ser um só. Enquanto não acontece... Aqui me infiltro eu, contando com a sua complacência.

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Outro indício da proximidade de comida e turismo é a atitude dos comensais diante de seus pratos nos restaurantes. Alguns comem como nos velhos tempos. Mas, na era do Instagram, cada vez mais gente usa a refeição como versão moderna para a velha e intragável projeção de slides que os viajantes chatos impingiam a amigos e familiares. Só que a chatice agora é instantânea, em tempo real.

Quando chega o prato, a pessoa nem repara se é bonito, nem sequer se é o bife que pediu; se chegar uma lasanha, não tem problema, o importante é fotografar. E postar.

Puro exibicionismo, vontade irrefreável de se vangloriar de minutos num lugar chique, e de humilhar os amigos que estavam muito bem da vida comendo em casa seu bife à milanesa (provavelmente melhor).

E não é somente o ritual das fotos. Reparo que, enquanto admiro (ou me escandalizo com) o prato, dou uma cheiradinha para que eventuais aromas agucem o paladar e começo a prová-lo, as pessoas na mesa estão postando, teclando, e muitas vezes aguardando ansiosas quantos likes estão pipocando, quem está comentando.

O prato esfriando.

Aí me mostram o que estão postando. Não entendo. Não dizem o que é o prato, menos ainda se é bom, ruim, nada (claro, nem provaram ainda). Nem sequer em que restaurante estão (a menos, é claro, que seja em Paris ou no Fasano, algum lugar que projete a fantasia de se mostrar superior à matilha de seguidores).

E aí me perguntam, assombrados ao me verem limpando os lábios diante do prato vazio que pude degustar: "Mas você não tem Instagram?" Ao que sempre respondo: "Não, prefiro viver". E acrescento, ante o prato ainda cheio e frio do interlocutor: "Quanto a você... E aí, comeu?".


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